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Crítica

Donos de uma filmografia riquíssima, os irmãos Joel e Ethan Coen sempre mostraram habilidade invejável para transitar entre gêneros diferentes, criando obras notáveis e que nunca deixaram de ter as marcas de seu cinema. Logo no início da carreira, a dupla apareceu com o eficiente thriller Gosto de Sangue (1984), partindo depois para o divertidíssimo Arizona Nunca Mais (1987). Para confirmar de vez seus talentos, realizaram este Ajuste Final, um filme de gângster que não só faz jus aos melhores do gênero, mas que também funciona como belíssimo estudo de personagem.

Ajuste Final se passa na época da Lei Seca e foca conflitos entre as máfias locais de uma cidade americana. Nesse contexto, o chefe do crime, Johnny Caspar (Joe Polito), avisa seu rival, Leo O’Bannon (Albert Finney), que pretende matar o apostador Bernie Bernbaum (John Turturro), em virtude de trapaça. Apesar de ter o apoio de seu conselheiro, Tom Regan (Gabriel Byrne), Leo decide proteger Bernie, já que se trata do irmão de sua namorada, Verna (Marcia Gay Harden), ela que mantém um caso com Tom. Tal decisão dá início a uma guerra e Tom passa a tentar manter a paz entre os dois chefões, ainda que isso venha a afetar seus próprios interesses.

Assim, os Coen apresentam um mundo de traições e desconfianças, repleto de figuras desprezíveis, onde não há espaço para ingenuidade, covardia e nem mesmo para amizades. Este último aspecto, por sinal, parece até importante, mas não passa de uma ilusão, porque no final das contas os negócios sempre vêm em primeiro lugar. Ninguém pode ficar por baixo nesse universo corrupto, e isso rege boa parte dos atos dos personagens frios e calculistas que guiam a trama e tornam a experiência de assistir a Ajuste Final tão fascinante.

Tudo é comandado com elegância pelos Coen (sim, o filme é reconhecidamente dirigido pelos dois, mesmo com Ethan não sendo creditado na função ao lado do irmão, como passaria a ser a partir de Matadores de Velhinha, de 2003). Em determinados momentos, eles demonstram prezar bastante pela sutileza. Quando um personagem é socado escada abaixo, por exemplo, a ideia de que ele está sendo rebaixado é perceptível sem grandes alardes. Além disso, é interessante ver o contraste que os Coen criam entre o que se vê geralmente na tela e o tom às vezes melancólico (apesar da violência que acompanhamos), o que até pode ser creditado em boa parte à fantástica trilha de Carter Burwell. Para completar, é admirável como os irmãos cineastas impõem um visual que faz a narrativa lembrar constantemente os filmes noir, seja pela impecável recriação de época feita pelo design de produção ou pelo belo jogo de luzes da fotografia de Barry Sonnenfeld.

Enquanto isso, o elenco é irrepreensível em suas composições. O veterano Albert Finney interpreta Leo como uma figura de autoridade e inteligência inquestionáveis, algo que fica claro desde sua primeira cena. O momento em que ele escapa de um atentado é, sem dúvida, um dos melhores do filme. Já o excelente Jon Polito aposta em uma ansiedade que de certa forma torna seu Johnny Caspar o oposto de Leo, já que enquanto este se sente seguro em seu poder, aquele deve correr mais um pouco para alcançá-lo. E se Marcia Gay Harden se destaca ao tornar Verna uma mulher forte e que beira a femme fatale, John Turturro brilha ao fazer de Bernie um homem bobo por almejar mais coisas do que deveria, mas cujos atos ainda assim se revelam imprevisíveis.

Mas o grande nome do filme é mesmo Gabriel Byrne que, como o protagonista Tom Regan, surge como a figura mais íntegra da galeria apresentada pelos Coen ao longo da história. Tom mostra ter a ética que Johnny Caspar logo no início diz tanto valorizar. Mesmo que aja como um verdadeiro anti-herói, isso não o impede de ser o único a demonstrar sentimentos por outras pessoas, como Leo e Verna. Sem falar que seu arco dramático é muito bem desenvolvido, detalhe evidente em duas cenas específicas e aparentemente iguais envolvendo Bernie, mas que têm resultados diferentes. Byrne encarna o personagem com a sensibilidade que ele merece, em uma das melhores atuações de sua carreira.

Impressionante em todos os sentidos, Ajuste Final se estabelece facilmente como uma das obras-primas dos irmãos Coen. Aliás, este é um elogio considerável se levarmos em conta que a dupla vem conseguindo manter a genialidade vista nesse início de carreira durante a maior parte de sua filmografia, algo que chegaria ao ápice no premiadíssimo Onde os Fracos Não Têm Vez (2007). O que, convenhamos, é digno de aplausos.

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