Crítica
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Crítica
A sensação que prevalece ao fim de Alan é a de que os cineastas Diego e Daniel Lisboa materializaram em forma de cinema a sua admiração incondicional por um amigo que se foi. Incondicional, mas não desatenta às arestas desse sujeito levado a viver à margem da sociedade contra a qual se rebelou de modo poético e contundente. Alan do Rap era um artista do circuito underground soteropolitano, cujas músicas rimavam sobre um Brasil que transforma em descartáveis os nascidos pobres e/ou que não conseguem se encaixar de alguma maneira. Mas, a dupla de realizadores não toma o caminho da celebração pura e simples. Eles fogem àquele modelo documental biográfico que informa todos os passos de uma vida desde cedo marcada por tragédias cotidianas. Felizmente não temos algo do tipo: “Alan nasceu num lugar tal e seu pai trabalhava assim e conheceu sua mãe assado”. Não há essa atenção ao tronco familiar, ao que poderia "explicar" a realidade do poeta que vomitava inconformidade em letras críticas à omissão do Estado. A sugestão de uma condição herdada é bem menos direta e pretensamente explicativa, pois implícita como estrutural. Desse modo, o filme escapa a algo comum no documentário, não apenas o brasileiro, que é desenhar um percurso para o espectador saber de onde veio (no sentido do parentesco) esse homem de indignação inflamável.
Alan nos é apresentado entre a descrição de sua moradia improvisada numa comunidade periférica da Bahia e a improvisação de um rap de protesto. As improvisações se complementam no plano simbólico. A câmera não incomoda o protagonista, pelo contrário. Alan parece se sentir prestigiado por ter uma lente nele interessada. Disso decorre a proximidade, as conversas francas e até os instantes de performance. Alan do Rap olha diretamente para o dispositivo, se refere ao documentário como projeto pessoal, talvez por saber da importância daquilo como instrumento para transportar sua voz além dos círculos aos quais tem acesso. Diego e Daniel Lisboa explicitam por meio de um letreiro no encerramento que as imagens foram capturadas ao longo de dez anos. Portanto, ambos fizeram parte ativamente do cotidiano do amigo/artista de quem documentaram êxitos e infortúnios. Um momento tocante de cumplicidade entre realizador/personagem ocorre quando Alan constata que especificamente Diego o filmou com o pé machucado, na cadeia, perambulando por hospitais em busca de alívio para suas dores, invadindo palcos de artistas famosos para impor sua voz – rompendo um sistema. E a construção dessa camaradagem é marcada por um evidente afeto mútuo. A amizade vira um importante elemento periférico do filme. Mas, o protagonista continua sendo Alan.
Alan não é sobre a intimidade entre a câmera e o artista. É um filme sobre Alan do Rap, essa voz inconformada que anunciava indignação e talento. A imagem com textura de vídeo, a razão de aspecto 4:3 (tela quadrada), o descompromisso com uma concepção padronizada de beleza, tudo isso confere ao filme uma aparência de registro íntimo. E essa pegada é também claramente marginal a um sistema comercial de cinema que prega a necessidade de certos códigos. O cinema hegemônico ao qual o espectador é submetido (leia-se, vindo dos Estados Unidos e de países europeus) pressupõe que para um filme ser considerado “bom” ele precisa atender a algumas expectativas técnicas/narrativas. Diego e Daniel Lisboa vão na contramão desse cinema de composições belas, simetrias e sons harmônicos, aproveitando-se dos ruídos para construir uma experiência consciente das imperfeições. Há um projeto estético definido no longa-metragem dos irmãos. Eles utilizam a moldura para não trair o ímpeto libertário/transgressor do homem que se expressava ao tomar o microfone de assalto. A trama é repleta de elipses, não propõe uma jornada no sentido estrito do termo. O filme bate na telona como um berro cheio de saudade e contrário às padronizações do bom gosto, do bom mocismo e das boas maneiras. É um cinema que não conforta, pois implica o espectador na saudade e na conscientização.
Os realizadores não desenham um panorama social a partir de Alan do Rap. Não se empenham para fazer dele um exemplo. Sua singularidade é mantida como farol. No entanto, consciente ou inconscientemente, Diego e Daniel Lisboa acabam expondo um painel sintomático de exclusões e demais formas de violência. Ao se aproximar de um artista periférico que criava espontaneamente apesar das imensas dificuldades cotidianas, eles aludem a uma realidade que infelizmente diz respeito não somente ao seu admirável protagonista. Ao mostrar um homem tentando ser feliz a despeito das precariedades de moradia e segurança decorrentes das omissões de um Estado perverso, fazem menção a algo histórico e estrutural. Quando colocam as palavras firmes de Mano Brown na telona, criam uma tensão entre o "sucesso" e o “fracasso” dos poetas propostos a cantar as mazelas do mundo. Assim, abordam as incapacidades pessoais de Alan do Rap que, somadas às agruras de sua precária condição social, determinam um destino fatídico. Alan é um filme que transpira saudade, admiração e indignação. Felizmente, essas condições são representadas não apenas por meio das duras palavras daqueles que estão diante da câmera. Elas estão em comportamentos, contradições, bem como nas imagens e nos sons ruidosos que aludem metaforicamente às inconveniências de um Brasil impiedoso.
Filme assistido durante o 11º Olhar de Cinema de Curitiba, em junho de 2022.
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