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Sinopse
Levando em consideração que não podem se encontrar, os membros de um grupo de atores e atrizes busca soluções para ensaiar. Entre elas está utilizar os próprios familiares para contracenar na peça Álbum em Família, de Nelson Rodrigues.
Crítica
Em alguns anos talvez tenhamos na historiografia do cinema um período conhecido como Cinema de Pandemia ou algo parecido. Desde que a Covid-19 impôs drásticas transformações às rotinas mundiais – isolamento, assepsia praticamente obsessiva, utilização de máscaras e convivência com o luto –, o cinema vem tentando contornar dificuldades de ordem prática e, quiçá, transformá-las em atributos de linguagem. São abundantes os projetos feitos com o elenco completamente separado, cuja dinâmica se dá primordialmente por intermédio de telas. Ainda no olho do furacão, não temos o distanciamento temporal necessário para compreender se essas necessidades de adaptação vão trazer consequências (heranças) às formas de contar histórias audiovisualmente. Será que teremos uma naturalização ainda maior de dispositivos permeando relações fisicamente distantes? Álbum em Família nasce exatamente de algumas inquietações frente a esse cenário caótico e ressignificado diariamente por novidades e atualizações das diretrizes científicas (o que nos salva em tempos de peste). No entanto, o roteirista/protagonista/diretor Daniel Belmonte não permite ao expectador chegar a uma conclusão própria sobre esse ponto de partida. Desde o começo, ele faz questão de explicar, de pontuar cada dificuldade e esmiuçar dores e delícias. E isso acontece com os demais personagens numa lógica visual que burocratiza a alternância entre registro pessoal e compartilhamento das(nas) telas.
Em Álbum em Família sobressai um didatismo ornamentado com o fino verniz da cumplicidade. Diretor-ator, Daniel Belmonte anuncia porque decidiu fazer um filme sobre a encenação remota da peça Álbum de Família, de Nelson Rodrigues. Logo depois, como se estivesse respeitando uma fila indiana, coloca atores (que interpretam personagens com seus nomes) manifestando expectativas quanto ao mergulho no escuro. Na superfície, é uma sucessão de confissões que visa aproximar eles todos do espectador. Porém, não há muito espaço de manobra nessa restrita visita guiada às particularidades de cada um. Sendo assim, o resultado é uma consecução de meras exposições engraçadinhas, num jogo de cena em que realidade e ficção não se confundem. A fim de compreender o propósito do filme, podemos pensar nas alternativas apresentadas (embora nenhuma se imponha). Há a discussão da atualidade dos escritos de um dos nossos principais dramaturgos – e nela prevalece um tom de autodepreciação que resvala frequentemente na ridicularização. Enquanto os membros tarimbados do elenco falam da importância dos clássicos, os "novatos" problematizam questões como misoginia e racismo presentes naquilo que antes se convencionou tratar de forma sacralizada. Mas, não há um mergulho nesse choque e nem na forte contradição entre o Nelson Rodrigues escritor e seu equivalente cidadão – já que ele era libertário escrevendo e conservador quanto à vida política brasileira, chegando a flertar com a ditadura. Muito é assinalado, trazido à superfície, mas bem pouco é desenvolvido.
Daniel Belmonte claramente deseja brincar com estereótipos, inclusive (e principalmente) os atrelados à concepção artística. O fato de não se equilibrar bem entre o diagnóstico e a caricatura esvazia os personagens e os torna ocos. Otávio Müller vive o sujeito indignado com as liberdades tomadas pelo diretor; George Sauma está ali para ser simplesmente o insatisfeito com o tamanho do papel; Dhara Lopes é a questionadora sagaz, mas não ouvida pela maioria e tampouco dona de força para se impor; Cris Larin é a mãe de família do filme interpretando a mãe da família da peça, espelhamento que não vai longe. Além deles, Kelson Succi e Eduardo Seperoni dividem a construção de um sujeito controverso e sequer as diferenças entre ambos gera um curto-circuito. Renata Sorrah e Lázaro Ramos fazem minúsculas participações afetivas. Por fim, Ravel Andrade e Valentina Herszage, mesmo aparecendo pouco, se destacam numa boa cena expressionista. Álbum em Família é feito de fragmentos dessas dificuldades específicas. E elas respondem mais a arquétipos de artistas do que dialogam com o dia a dia de pessoas que enfrentam vários desafios para subsistir na pandemia. Aliás, a crise social sanitária que une os personagens numa circunstância isolacionista é pouco mencionada. Daniel Belmonte a restringe a breves comentários, como quando tenta alinhavar o discurso acerca de ser sadio e produtivo em tempos pandêmicos. Há muitas tentativas no filme, mas poucas se transformam em efetivos. Há boas possibilidades no diálogo entre teatro/cinema/realidade, mas poucas geram reflexões ou análises.
Álbum de Família é uma tragicomédia com ponderações sobre o ato de criar. Apesar do recorte evidentemente instigante, o resultado é sabotado por desperdícios de várias ordens. A obra de Nelson Rodrigues serve estritamente como desculpa para pontuar as hipocrisias da chamada “família tradicional brasileira”. A relação entre as famílias da peça e as dos artistas não tem liga, pois é feita de maneira frouxa. Há uma manifestada vontade de entender esse grupo fictício num método caótico e comum, já que os atores convivem diariamente confinados com os seus. E o que essa ponte significa? Infelizmente pouco, porque não há uma comunicação densa entre peça, filme e a realidade acessada nas bordas da encenação. Discussões sobre obstáculos, anacronismos, papel da arte, exaustão criativa, restrições do isolamento, entre outras, são diluídas numa dinâmica que privilegia o sorriso amarelado pela pandemia. Daniel pinta seu diretor como um sujeito despreparado, um quase alienado diante de uma escolha fundamental: traduzir Nelson aos parâmetros da atualidade ou manter-se fiel ao texto que soa mais atual do que gostaríamos? Assim como esse, os demais dilemas são encarados como frivolidades. A preocupação dos intérpretes negros com o racismo, a ponderação da atriz que preferia encenar Clarice Lispector, as restrições de uns e os arroubos de estrelismo de outros, tudo isso reverbera de modo escasso, pois resultado de gestos e respostas tratados como puros caprichos e cismas.
Filme visto durante o 49º Festival de Gramado, em agosto de 2021.
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Pensei que o texto fosse sobre aquele filme com a Lucélia Santos,em todo caso,muito bem escrito a crítica.