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Sinopse
Dois amigos passam a infância na pequena e conservadora cidade de Coti das Fuças, no interior do Brasil. Ao 50 anos, depois de décadas de separação, Levi volta à sua terra natal para o funeral de Elias.
Crítica
A estreia do ator Gero Camilo na direção de longas-metragens nos convida a exercitar o músculo da imaginação. Diga-se de passagem, músculo esse fadado à atrofia por uma experiência cinematográfica hegemônica continuamente marcada por filmes “esclarecedores” que evitam provocações e abominam a invenção. Acostumado a receber tudo mastigado, convidado a simplesmente torcer por alguém contra outrem, o cinéfilo atual corre o risco de perder o interesse por algo que fuja dessa dieta pastosa composta de imagens explicativas e fronteiras indubitáveis entre o bem e o mal. Assim como tinha feito Lars von Trier em Dogville (2003), Gero busca alternativas a isso no teatro (a origem do texto) para contar uma trama que aborda amizade, memória e desejos (os vivenciados e os interditados). Em Aldeotas, o realizador de primeira viagem não está preocupado em enfatizar limites entre teatral e cinematográfico. Nele, o teatro é abraçado como uma enorme possibilidade cinematográfica. Tudo começa com um homem chegando ao velório do amigo de quem não têm notícias há décadas. O pequeninho Levi (Gero Camilo) avança rumo ao caixão enquanto recita os termos de sua saudade, cantarolando uma história de meninos que moram no centro da Terra. Logo, Elias (Marat Descartes) "levanta do sono eterno" para relembrar os tempos da meninice interiorana com o amigo.
No seu período clássico, o cinema propunha ao espectador um pacto de ilusão caracterizado por certos protocolos. Por mais postiços que parecessem os estúdios, eles almejavam recriar noções verídicas. Isso quando o cinema nem pensava em ir às ruas. Então, havia um acordo tácito com a plateia: mergulhar na mentira e aceitar de bom grado seus toques inverídicos. Aos poucos, o cinema foi entendendo que revelar seus truques poderia ser uma forma eficaz de aprofundar a relação com os olhares que o significam. Pensando nesse sentido, podemos dizer que Aldeotas investe na poesia estrategicamente para escancarar a ilusão como um gesto emancipatório. O diretor não esconde a representação, pelo contrário, a valoriza como elo artístico entre objetividade e subjetividade. Explicitamente, temos em cena dois atores na casa dos 50/60 anos representando versões infantis/adolescentes de protagonistas que passam poucas e boas numa cidade do interior construída cenograficamente. Eles transitam num galpão repleto de espaços montados como no teatro, ou seja, sem compromisso estrito com a verossimilhança externa. Não importa se a casa de Elias é uma estrutura recoberta por lençol, desde que acreditemos naquilo como uma residência. O mesmo acontece com o rio fundamental à rememoração ao longo do filme. Literalmente, ele é uma piscina com uma pedra postiça localizada ao fundo. No entanto, a força da representação atribui a esse fingimento cênico o status de rio.
Mas, por que isso seria emancipatório? Porque o espectador é submetido simultaneamente às naturezas concreta (falsa) e poética (que ressignifica essa falsidade), podendo assim optar se adere a ela ou não. São disponibilizadas ferramentas suficientes para esse espectador duvidar de imagens/palavras e escolher se embarca na fábula ou se estagna na incredulidade. É como se Gero Camilo dissesse: “está aí, tudo é claramente falso, mas vou mostrar como a arte pode transformar o postiço em verdadeiro”. O diretor aposta numa espécie de distanciamento brechtiano – de acordo com sua definição, “retirar do acontecimento ou do caráter aquilo que parece óbvio, o conhecido, o natural, e lançar sobre ele o espanto e a curiosidade”. Temos em cena dois atores numa sucessão de episódios que resumem a juventude compartilhada. O mundo externo é sugerido à imaginação e as figuras opressoras são mencionadas com entonações sugestivas dos malefícios que elas causam nos protagonistas. Apenas num momento surge a terceira voz (de Claudio Jaborandy) para cravar a agressividade do pai de Elias. Há impacto nessa sonoridade que situa o patriarca como dado expressivo e dramático. Mas, talvez essa inserção seja uma quebra pouco efetiva, pois não faz tanta diferença ao romper com a radicalidade das pessoas recriando retrospectivamente o mundo poroso das lembranças. No entanto, nada que atrapalhe significativamente o bonito resultado alcançado nessa viagem saudosa ao passado.
Como exemplar moderno, Aldeotas escancara o fazer cinema. A encenação é habilidosa ao ponto de sermos transportados a uma dimensão falseada que faz todo o sentido, mesmo para além da apreciação do método. Marat Descartes carrega numa entonação de imitação, com a sua voz afinada para interpretar Elias, o menino angustiado que sonha em ser jornalista e viver na metrópole. Já Gero Camilo tem uma composição mais sóbria e natural de Levi, o rapaz corajoso, aspirante a poeta que precisa enfrentar as maledicências da comunidade agressiva por conta de sua homossexualidade. Quando menos esperamos já estamos suficientemente mergulhados nas aventuras desses amigos interpretados por marmanjos conhecidos, vibrando com suas conquistas em cenários falsos, torcendo para eles escaparem à sina da localidade desenhada artificialmente com pompas de veracidade estilizada, admirando a forma livre como ambos vivenciam desejos e entristecendo diante dos efeitos da padronização imposta pelos familiares ignorantes. Aos poucos, o lirismo deixa de ser apenas um efeito colateral dessa elaboração e se torna um motor das emoções, enquanto os meninos de ontem resgatados pelos homens do presente passam por coisas praticamente universais, tais como dores, dúvidas, saudades, impossibilidades, esperança e sonhos. Esse debute de Gero Camilo é uma viagem lúdica.
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