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Onde Assistir

Sinopse

Entre o Brasil e Angola, entre Salvador e Luanda, o músico Mateus Aleluia apresenta sua concepção da arte e da vida, contrapondo as interpretações contemporâneas com as canções da época em que se apresentava no trio Os Tincoãs.

Crítica

Não é incomum se deparar com documentaristas que justificam suas escolhas estéticas, durante entrevistas ou em resposta a críticas, por meio da limitação imposta pelo tema. “Eu não tinha muito material de arquivo para incluir”, “Eu precisava explicar a história do meu personagem, por isso o letreiro e a voz em off, “Mas é documentário, sempre fica um pouco explicativo mesmo, é próprio à linguagem”. Estes argumentos jamais soam convincentes, primeiro porque o criador deveria assumir suas escolhas, e segundo, porque o documentário já comprovou inúmeras vezes seu potencial de criação e subversão estética, sem se limitar ao didatismo, nem à referencialidade entre som e imagem. A estes criadores, seria recomendável que assistissem a Aleluia, o Canto Infinito do Tincoã (2020). É evidente que a diretora Tenille Bezerra não possuía farto material de arquivo à disposição. O filme também não conta com um orçamento confortável, nem uma grande equipe. Mesmo assim, ao acompanhar Mateus Aleluia, antigo integrante da banda Os Tincoãs, ela jamais se prende à suposta obrigação de explicá-lo. Qualquer informação passível de descoberta na Wikipédia está ausente no filme. O músico tampouco narra sua trajetória, do início ao fim. O filme se interessa por ele enquanto indivíduo e pensador, não como exemplo ou sintoma de uma banda que não existe mais.

Deste modo, o filme não converte seu protagonista em objeto de estudo, evitando observá-lo de fora. O projeto se realiza com Aleluia enquanto co-criador. A câmera livre e muito bem posicionada da própria Tenille Bezerra parece segui-lo por onde ele quiser ir, seja pelas ruas de Luanda, em Angola, pelo mercado onde compra uma galinha ou por uma estrada repleta de vegetação. Ao invés de condicionar o músico a fornecer as informações convenientes ao filme, dispõe-se a abraçar frases que ele venha a oferecer por conta própria. Nota-se a fascinação por Aleluia hoje, em idade avançada, e não apenas enquanto membro do grupo musical. Em paralelo, o olhar da direção se atenta a quaisquer belezas que se ofereçam à sua frente: uma vendedora explicando o significado de objetos religiosos, um balão que escapa às mãos de uma criança brincando no topo de um prédio. A maior parte dos filmes eliminaria este trecho não diretamente relacionado ao tema do filme. No entanto, a cineasta compreende que os fragmentos de poesia cotidiana são fundamentais para representar o universo lúdico no qual se criaram as melodias igualmente harmônicas dos Tincoãs. A música convive no mesmo horizonte do balão perdido pelos ares.

Quando Mateus Aleluia interpreta canções dos Tincoãs, ele nunca o faz para a câmera, olhando a diretora, nem posando de forma mais propícia à captação. Pelo contrário, a imagem pede licença para se ajustar àquele espaço da melhor maneira possível, como se temesse atrapalhar o ensaio do músico. Bezerra circunda o espaço, gira silenciosamente por Aleluia e ousa filmar sua nuca enquanto ele canta. A ideia é tão singela quanto potente: o músico não é apenas voz e canto, ele também é corpo e pele, no caso, uma pele negra, cujas relações com a tradição africana se tornam essenciais em sua formação e sua arte. Para um projeto que se abre com uma frase da historiadora e poetisa Beatriz Nascimento, sobre a importância de estabelecer “elos em uma história fragmentada”, somos condicionados a enxergar na cultura negra um papel fundamental para a produção do lirismo destes músicos, capazes de unir sonoridades tipicamente brasileiras com aquelas de origem africana. Tais sugestões ocorrem via montagem, jamais por diálogos, letreiros ou exposições em depoimentos. A associação de imagens também permite assistir a duas interpretações da mesma canção: uma atual, com Aleluia idoso, e a outra, durante o auge da banda. O exercício do tempo se torna visível através de um simples corte na montagem.

“A arte não tem maquiagem. A arte nunca foi arrumada”, defende o músico. “A arte é um momento, um sopro”. Mais tarde, elabora a respeito da música: “Quem captou, captou; quem não captou, aí já é outra situação”. Aleluia, o Canto Infinito do Tincoã se destaca por buscar uma forma capaz de dialogar com a produção do artista. Ao contrário de tantos retratos convencionais sobre pessoas ousadas, Bezerra encontra uma forma onírica de retratar canções igualmente oníricas. O roteiro não é linear ou cronológico; ele não conduz o espectador a qualquer rumo específico, porque a imagem se adapta ao mundo oferecido por Aleluia, ao invés de tentar encaixá-lo em vontades preestabelecidas. A busca pela ancestralidade combina o resgate da música de décadas atrás com a força dos povos negros e a importância das comunidades indígenas, compreendidas enquanto focos de resistência. A cena inicial, quando um barco desliza longamente pelo rio, é acompanhada de sons não-referenciais de tiros e cantos indígenas. Sugere-se a violência através de uma cena completamente pacífica, ou seja, cria-se tensão por meio da associação entre som e imagem. Como “a arte nunca foi arrumada”, a fotografia se permite ficar cada vez mais leve ao longo da narrativa, substituindo os planos fixos do início pela câmera na mão durante a segunda metade.

Além disso, o documentário revela o uso surpreendente das imagens de arquivo. As apresentações dos Tincoãs, em material granulado, distorcido e corroído pelo tempo, são reproduzidas enquanto tais, sem desculpa nem tentativa de minimizar a baixa qualidade do material. A erosão do tempo e a degradação do suporte digital constituem valor e conteúdo, tanto quanto a apresentação musical em si. A distância entre a qualidade destes vídeos e aquela produzida com celulares contemporâneos diz muito sobre a evolução do músico e da sociedade como um todo. Quanto às fotografias da época, ao invés de apresentá-las inteiras, o filme prefere se atardar aos detalhes mínimos, passeando pelo rosto microscópico de cada pessoa numa multidão de anônimos, criando movimento dentro de uma fotografia still, permitindo as distorções de foco e os reflexos decorrentes desta aproximação. Já as fotografias de grupo não são acompanhadas de uma descrição sobre cada pessoa presente, nem o contexto em que a imagem foi captada. Um dos elementos mais agradáveis ao espectador se encontra no banquete de imagens oferecido às sensações, ao invés da compreensão racional. O documentário possui, por si só, o ritmo de uma canção.

Filme visto online no 12º In-Edit – Festival Internacional do Documentário Musical, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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