Crítica
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Sinopse
Depois da morte repentina de seu pai e da perda do emprego como peão de fazenda, Leo decide satisfazer o último desejo paterno e rumar ao Rio de Janeiro para visitar o Palácio do Catete. E ele vai com o seu tio alcoólatra.
Crítica
Em Além de Nós, a aventura é motivada por mudanças forçadas. Leo (Miguel Coelho) é um rapaz nascido e criado no interior do Rio Grande do Sul que perde o pai logo depois de ser demitido. Nem bem digere a tristeza pela estância do patrão ser vendida em função da substituição da pecuária pelo plantio de eucaliptos na região, ele chega em casa e testemunha o pai estatelado sem vida. Sem tempo para assimilar uma dor, é logo submetido a outra. Então, o jovem adulto que nunca saiu dos campos nos quais transitou desde guri se depara com o último desejo do pai getulista: levar uma fotografia às escadarias da derradeira morada do falecido presidente Getúlio Vargas, o Palácio do Catete, situado na cidade do Rio de Janeiro. Além da pressa para juntar tantos elementos de teor dramático, o filme também rapidamente assume a sua vocação de narrativa de estrada. Leo cai no mundo na companhia do tio Artur (Thiago Lacerda), homem mais velho e sem perspectivas, a não ser a contagem das gotas que faltam para a garrafa de bebida alcoólica secar. O cineasta Rogério Rodrigues busca na tradição das trajetórias transformadoras os insumos para contar o que acontece entre esses sujeitos que se complementam em suas demandas ao se deslocarem juntos. Um é o inexperiente que precisa de guiamento rumo à vida adulta. O outro é o desorientado que aprende a ter responsabilidade.
Nada contra a utilização de estruturas conhecidas. Aliás, ponderando as poucas ambições estritamente cinematográficas de Além de Nós, o filme se encaixa confortavelmente naquela ideia de “história bem contada”. Os papeis são desempenhados com competência (não com tanta paixão e profundidade, é bom enfatizar); as imagens são adequadas e funcionais (raramente belas ou carregadas de simbolismos, porém); e as mensagens de aprendizado simultâneo são relativamente bem localizadas (ainda que reféns de um esquematismo engessador). Pensando na tradição dos chamados filmes de estrada, o longa-metragem segue protocolarmente a ideia de que os homens e as mulheres apresentados aos protagonistas lhes adicionam novas perspectivas. No entanto, a maioria desses encontros acaba se tornando uma forma meramente conveniente de garantir que a viagem não seja interrompida pelos contratempos. Por exemplo, não há nada de notório no trio que dá carona a Leo e Artur no motorhome, a não ser propiciar o avanço geográfico e, mais adiante, ser parte da coincidência do reencontro, algo meramente pertinente ao propósito do filme. É bem diferente do que acontece quando os dois se deparam com a personagem de Fernanda Carvalho Leite. Além do aspecto material (o dinheiro para prosseguir a jornada), ela funciona simbolicamente como ponte entre o tio e seu sobrinho.
No entanto, mesmo nessa dinâmica o cineasta demonstra um apego excessivo aos lugares-comuns. Quantas vezes já assistimos a filmes em que um jovem inexperiente passa pela iniciação sexual como prova de que está apto a começar a vivência adulta? O que enfraquece o discurso de Além de Nós é justamente a adesão irrestrita a esses clichês, sem algo que os personalize em alguma medida. Além disso, Rogério Rodrigues abandona cedo demais as referências ao faroeste, perceptíveis substancialmente na primeira metade do filme. Em determinado momento, Leo sai desolado do ambiente campesino por uma porta que lhe serve de moldura literal e metafórica, evidente alusão a uma das cenas mais icônicas de Rastros de Ódio (1956). O emblemático western dirigido por John Ford também serve como inspiração para a dinâmica estabelecida entre os viajantes. Leo é o equivalente ao personagem de Jeffrey Hunter no clássico estadunidense, ou seja, o novato que precisa aprender a lidar com as hostilidades do mundo externo à sua rotina calma; por sua vez, Artur é análogo à figura eternizada no Velho Oeste por John Wayne, o sujeito fraturado que expia os próprios demônios ao conduzir um inexperiente pelo caminho da luz. No entanto, a produção brasileira somente utiliza esses modelos, sem reproduzir as complexidades morais, éticas e psicológicas de suas célebres inspirações.
Outro desperdício fundamental para o resultado morno de Além de Nós é o olhar um tanto alienado às mudanças da paisagem gaúcha e como isso impacta a reconfiguração daqueles que lá nasceram e criaram raízes. Rogério Rodrigues sinaliza que os protagonistas são obrigados a se despojar dos ícones do gauchismo pelo caminho, como quando o cavalo é trocado pela motocicleta e nas vezes em que a pilcha (indumentária tradicional da cultura gauchesca) cede lugar a roupas mais adequadas a um cotidiano cosmopolita. O roteiro assinado por Romir de Oliveira Rodrigues, Rogério Rodrigues e Ulisses Da Motta trata esse desnudamento como um elemento periférico da mudança profunda à qual os dois personagens estão sendo submetidos pelas lógicas da estrada, entre elas o deslocamento que confronta a estagnação anterior. Não há consistência nesse aspecto simbólico que às vezes passa praticamente despercebido e noutras é enfatizado como algo essencial à jornada. Diferentemente de um filme recente como Casa Vazia (2021), que mostra a agonia resultante da morte de um estilo de vida pelo avanço do capitalismo, aqui o foco é na crença de que os desterrados conseguirão sobreviver apesar da mutação. Tanto que o gesto final atrela a confiança em dias melhores ao descarte do último elemento iconográfico que liga Leo ao gauchismo que o caracterizou até ali. A mensagem que fica é: o futuro é incerto, mas a mudança até pode ser positiva. Algo entre o conformismo e a esperança.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 5 |
Robledo Milani | 4 |
Alysson Oliveira | 4 |
MÉDIA | 4.3 |
Bom filme. Senti como uma espécie de epitáfio do gauchismo, narrado de forma leve. Os dois personagens são ligados às práticas tradicionais da Campanha gaúcha, sofrem a sua transformação (indicada pela estância que deixa de ser espaço de criação de gado para ser área de cultivo de eucalipto) e caem na estrada. A princípio eles viajam da Campanha gaúcha até o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, apenas para cumprir o desejo de um morto. Ao longo da viagem, porém, os personagem se modificam e parece que vão reorganizar as suas vidas com outras referências (longe das práticas campeiras, do gauchismo e coisas assim). Um final esperançoso. Um filme pra não deixar o espectador melancólico e achar que as mudanças que ocorrem no campo RS não são o fim do mundo. Considerando a tendência da cultura gaúcha em se manter apegada ao seu universo tradicional, me parece muito bem vinda uma narrativa sobre essa transformação numa toada diferente.