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Sinopse

A vida e a obra do designer de moda britânico Alexander McQueen, que começou construindo paletós numa cidadezinha até criar um império dentro de marcas como Givenchy e Gucci, e morrer precocemente aos 40 anos de idade.

Crítica

Havia forte tendência à idealização neste projeto. Os diretores Ian Bonhôte e Peter Ettedgui obviamente apreciam muito o trabalho do estilista, considerado um gênio no mundo da alta-costura. Alexander McQueen possuiu todos os traços associados à figura romântica do artista perturbado: as obras incompreendidas em seu tempo, a vontade de chocar o bom gosto e romper com regras, as variações de humor, as explosões de raiva, os acessos de arrogância, a morte precoce. Ele era vanguardista dentro de uma cidadezinha operária, gay dentro de uma família conservadora, desleixado e juvenil num mundo de elegância e profissionalismo. Seria fácil converter tantos elementos de exceção numa prova de talento e sinal de heroísmo. Além disso, a decisão de construir uma obra sobre um artista falecido constitui uma oportunidade propícia a homenagens, enaltecimentos, perdões em nome do valoroso legado. Mesmo assim, o documentário contorna a maioria destas armadilhas. Os cineastas jamais adotam o ponto de vista de um amigo saudoso, tampouco escrutinam a vida pessoal em busca de sensacionalismos ou lições de vida.

O equilíbrio é obtido por meio da justaposição harmoniosa entre diferentes opiniões. Em qualquer biografia, é fundamental que a montagem permita visões distintas, ou pelo menos complementares, de modo a construir um discurso único e pessoal, ao invés de se limitar a reproduzir a interpretação dos entrevistados. Neste caso, um depoimento sugere que McQueen nunca foi “descoberto” por Isabella Blow, visto que seu talento era inato. Ora, as cenas seguintes revelam o longo processo de aperfeiçoamento do garoto, ainda incapaz de enxergar o potencial transgressor nas roupas. O protagonista vende à mídia uma atitude rebelde, apenas para a mãe e os amigos o contradizerem, sugerindo que se trataria de uma persona muito diferente do sujeito gentil. A cada conquista de sucesso e glória, o discurso se volta à situação financeira precária do estilista. Quando ele adentra o fino ateliê da Givenchy, a cena seguinte o mostra fazendo palhaçadas ali dentro. Após momentos de amizade com Blow, descobrimos que brigaram e romperam. McQueen não se torna uma figura unificada ou idealizada. Há várias maneiras de compreendê-lo, e o filme privilegia o mosaico (tema estético adotado pelos letreiros finais) à defesa de uma interpretação única.

Em paralelo, existe evidente pudor na abordagem do jovem falecido. Sabemos que era gay, porém as imagens de afetividade com os namorados são suprimidas. Temos ciência da dependência de cocaína e da depressão, mas nenhum destes instantes é representado. As brigas com os pais, o desgaste do relacionamento com colaboradores, as ameaças de demissão da Givenchy são apenas aludidas. Durante a maior parte da narrativa, Bonhôte e Ettedgui preferem investir na construção de clima a oferecer imagens referenciais. A descrição de amigos, familiares e modelos sobre o trabalho de McQueen é acompanhada de cenas banais do estilista caminhando pelos corredores, ou admirando suas criações. Caberá ao espectador projetar seu imaginário da depressão, da dependência de drogas, da pressão financeira e do suicídio naquele rosto tão comum. Muitos documentaristas se acreditam munidos de uma tarefa referencial: contar e mostrar, sugerir e provar, fazendo com que som e imagem se repitam para transmitir o mesmo discurso. Ora, a dupla de cineastas opta por uma abordagem mais próxima da ficção, construindo uma atmosfera melancólica ou tensa, de acordo com os períodos evocados na vida de McQueen. Ao invés da trilha sonora pontual e chamativa, utilizam a música constante, muito baixa, em segundo ou terceiro plano (por trás das falas e dos sons ambientes), criando uma sinfonia ininterrupta de altos e baixos. Para os períodos desfavoráveis, entram em cena fotografias simples em tons mais escuros; para os momentos alegres, vídeos caseiros em que os amigos filmam uns aos outros.

Estas escolhas não decorrem de uma ausência de material de arquivo, muito pelo contrário: Alexander McQueen (2018) traz uma profusão de fotografias posadas e caseiras, vídeos e fotos de desfiles, imagens de cidades e casas de costura, artigos de jornal etc. Este material se une aos depoimentos, sempre elegantemente filmados e compostos (vide o testemunho dentro de casarões, com iluminações típicas de quadros renascentistas), às criações originais dos diretores, incluindo caveiras estilizadas para as vinhetas, e o mosaico final. O filme dispõe de farto material, mas nunca se torna refém dele, buscando associações mais livres e inesperadas para um homem igualmente avesso às convenções. A sequência sobre o suicídio do estilista constitui um ótimo exemplo deste procedimento, ao combinar fatos, impressões pessoais (a amiga que sente um espírito passando a mão em sua cabeça), uma lembrança irônica e a imagem do jovem apagando a luz do corredor após um desfile. O real se mistura com a ficção, o fato se combina à imaginação para desenhar uma representação dotada de tantas ambições estéticas quanto seu protagonista. Contratada para posar nua, com o corpo coberto de moscas, uma modelo hesita, mas responde que o fará “apenas pela arte”. “Mas não é por isso que todos estamos aqui?”, retruca McQueen.

Ao mesmo tempo, o documentário toma precauções humanistas e éticas notáveis: o filme faz questão de ressaltar o trabalho coletivo envolvido na criação e manufatura das roupas, ao invés de sublinhar apenas o ímpeto de McQueen. Ele filma com a mesma naturalidade pessoas famosíssimas e outras anônimas; dedica a mesma atenção às imagens elegantes e àquelas caseiras; trata com igual respeito os afetos e desafetos do protagonista. A organização em capítulos escolhe desfiles importantes para batizarem os capítulos representativos da trajetória do estilista. Deste modo, a vida pública e a privada se tornam interligadas, sendo impossível compreender o homem apenas por um ou outro aspecto. A alta-costura se torna a porta de entrada, embora o objetivo final seja entender McQueen. Como nascem os gênios? De que maneira aperfeiçoam a sua arte? Como lidam com as pressões da fama, das grandes empresas, da mídia? Como se relacionam, e por que se matam? Bonhôte e Ettedgui nunca louvam o estilista, apenas tentam compreendê-lo. Ao final, criam um filme sem revelações, apenas bons questionamentos a respeito do embate entre aparência e essência, entre o homem poderoso e o meio ainda mais poderoso que o traga por completo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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