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Crítica


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Sinopse

André e Hudson se encontram e se apaixonam. O primeiro trabalha com performances pornográficas, e o segundo, enquanto professor universitário. Conforme André traz Hudson para o seu mundo e o marido integra os vídeos sexuais, o relacionamento de ambos é abalado ao limite da ruptura.

Crítica

O artista multiplataforma André Medeiros Martins tem se especializado num gênero que os estudos de cinema convencionaram chamar, entre outros, de “autopornificação”. Ele expõe a si mesmo em performances sexualmente explícitas, utilizando a aparência do cinema caseiro para brincar com as múltiplas configurações dos corpos e da noção de erotismo. Numa iniciativa semelhante àquela de Gustavo Vinagre, Caetano Gotardo e Fábio Leal, dirige a si próprio. Existe um componente narcisista óbvio nas apresentações, porém consciente deste pressuposto ao limite do paródico, do escracho ou do bizarro. Enquanto se acusa o audiovisual narcísico de idealizar a figura do criador, colocando-o em posição de herói, a linguagem propensa ao registro cru, e mesmo à ridicularização, torna-se motor de confronto político. Cada vez que Martins coloca a si mesmo penetrando, sendo penetrado, engolindo esperma ou vestindo-se da Mística em X-Men, numa paródia pornográfica, ele escancara o conservadorismo dentro da sociedade e do próprio meio LGBT.

Alfabeto Sexual (2020) constitui uma extensão lógica do processo criativo do autor em sites e plataformas pornográficas. Ele expõe também o marido, Hudson de Carvalho, desde o primeiro encontro até o limite do término do relacionamento, desgastado pelo sexo gravado e exposto na Internet. Parte da narrativa se baseia em ferramentas comuns ao documentário: as entrevistas diretamente à câmera, seja do casal, ou de um dos dois separadamente. O uso de material de arquivo – no caso, as esquetes envolvendo André e Hudson – também representa uma utilização comum ao registro documental, ainda que o conteúdo não seja tão socialmente comum assim. Martins explora a seu favor a potencialidade do amadorismo: ao invés de travestir os vídeos caseiros de produções profissionais, assume em termos de produção e edição o caráter improvisado e lúdico das sequências. A presença do humor (o “Abecedário da Xuca”) e da metalinguagem em abismo (o filme sobre outros filmes que seriam, por sua vez, metaficções) permite observar o resultado com o devido distanciamento: o intuito seria menos excitar o espectador para “fins masturbatórios” (uma das definições da pornografia) do que estudar os motivos que provocam a excitação. Em outras palavras, este seria um projeto sobre o pornô, ao invés de um filme pornô.

Um dos méritos se encontra na naturalidade (ou naturalização) dos fetiches, retirando-os do espaço “sujo”, “vergonhoso” e reservado ao tabu. Ao fundir o público e o privado (Hudson utiliza suas próprias gravações pornográficas para debater a estética do pornô em sala de aula), Martins permite que o fisting, o golden shower, a orgia, o role play, a dominação e tantas outras formas de prazer sejam abordadas em pé de igualdade umas com as outras. O mesmo vale para relacionamentos: o autor nem vangloria os romances abertos, nem condena a monogamia – há notáveis discordâncias entre o casal a este respeito. Em paralelo, o caráter repetitivo das imagens de sexo atenua o aspecto de choque: talvez seja escandaloso assistir, dentro do cinema não-pornográfico, a uma cena de dois homens se penetrando. No entanto, a partir da décima, décima quinta cena, não há mais surpresa. Este movimento constitui uma afronta interessantíssima em termos de relação com o espectador: quando os fetiches se tornam cotidianos e assumidos, eles perdem o caráter proibido. Martins nunca busca o ângulo mais belo para os corpos, nem propõe enquadramentos destinados a provar a “verdade” da penetração, comuns aos close-ups do pornô padrão – para ele, é tão importante revelar o dispositivo cinematográfico, o apartamento e o cachorro quanto a penetração em si. Lembre-se: este é um filme sobre o ato de ver, tanto quanto sobre aquilo que se vê.

A beleza de Alfabeto Sexual provém de sua construção enquanto história de amor. Talvez as orgias distraiam o público a este respeito, mas o documentário ficcionalizado jamais perde de vista a dimensão afetiva. O carinho de André por Hudson, e vice-versa, além da humildade na exposição das dores do casal revelam-se de uma ternura comovente. De certo modo, expor a crise de choro durante uma suruba, ou o incômodo de testemunhar o marido fazendo sexo com outros homens (a partir de uma iniciativa do próprio cineasta) se traduz numa capacidade de se desnudar equivalente àquela da nudez literal. A posição de controle associada à direção torna-se mais horizontal a partir do momento em que o professor universitário assume a função de coautor, e que os atores convidados têm liberdade para desempenhar suas ficções diante das câmeras. O olhar da direção, assumidamente voyeurista, perde o posto de espaço de dominação e apreensão da imagem do outro, convertendo-se em confissão de fragilidade. Quanto mais vemos as propostas cênicas de André, menos ele parece confortável com a própria iniciativa. Enquanto observa as cenas, o diretor – e o espectador, por consequência – tem a impressão de que as cenas o observam de volta.

Enquanto obra aberta à experimentação – ainda que não seja, estruturalmente falando, “experimental” -, o resultado se presta a articulações mais ou menos bem-sucedidas de imagens e sons. As sobreposições aceleradas e fantasmáticas transmitem de maneira eficaz aspecto hipnótico dos sucessivos encontros sexuais (cujo teor de saturação é fundamental ao protagonista). No entanto, a captação de som é prejudicada pela simplicidade de recursos. O filme se vale destes aspectos em chave autoconsciente, no entanto, a combinação de imagens contemporâneas e vídeos pessoais do artista traz cortes abruptos e recursos pouco refinados de finalização. Em se tratando de cinema sobre a pornografia, gay e fetichista, o ponto de vista se torna contrário ao de Vento Seco (2020), de Daniel Nolasco: enquanto o diretor goiano aposta na produção impecável para discutir a estética pornô por meio da idealização, ao limite do fantástico, Martins reflete sobre a pornografia através da desconstrução radical desta mesma idealização. Trata-se de duas maneiras simetricamente opostas de fugir ao real para refletir a realidade, seja por metáfora, metonímia ou paradoxo. Por fim, ambos apostam numa multiplicidade de existências e sentimentos, expressos de maneira ainda mais libertária porque inseridos numa sociedade que tenta aprisioná-los.

Filme visto online no Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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