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Sinopse

Alice é uma jovem pesquisadora em filosofia e pedagogia, contratada pela Prefeitura de Lyon para um cargo administrativo. Chegando ao local, descobre que terá outra função: ela será responsável por trazer novas ideias ao prefeito sobre como gerenciar a cidade a partir dos conceitos de grandes filósofos. Enquanto se habitua ao caótico dia a dia do edifício administrativo, Alice se questiona sobre a possibilidade de colocar estes pensamentos em prática.

Crítica

“Os eleitores sempre pediram mais direitos, mais democracia. Mas nos últimos anos, começaram a suspeitar da democracia”. A frase é proferida por Paul Théraneau (Fabrice Luchini), prefeito socialista da cidade de Lyon, na França. Este homem se encontra dividido a respeito de suas ambições: deveria concorrer à presidência, ou talvez sair da prefeitura e realizar ações pontuais no âmbito local? A melhor maneira de colocar ideias progressistas em prática seria através do contato diário com as comunidades, ou pela gestão nacional? De que modo a esquerda, percebida como sonhadora pela direita burocrática, poderia viabilizar sua defesa de igualdade de oportunidades, distribuição de renda, acesso a direitos básicos? Em seu segundo longa-metragem, o diretor Nicolas Pariser mira longe no que diz respeito à profundidade do debate. A narrativa se desenvolve a partir de uma das questões mais importantes à democracia moderna: com quais ferramentas se pode eliminar o abismo entre teoria e prática, impedindo que brilhantes intelectuais conversem apenas entre si, enquanto a vida dos miseráveis permanece inalterada? As convicções revolucionárias são viáveis na sociedade contemporânea, no interior da política institucional?

O roteiro decide literalmente juntar estas esferas, colocando lado a lado um político e uma filósofa. Contrariando secretários, publicitários e assistentes de comunicação, Paul contrata Alice (Anaïs Demoustier), uma pesquisadora acadêmica, para ajudá-lo a “ter ideias”. “Não consigo mais pensar”, ele argumenta, embrutecido pela sucessão interminável de reuniões, memorandos e eventos. Através deste encontro, o cineasta contrasta realidades distintas na esquerda: a geração dos 60 anos contra aquela dos 30; um homem contra uma mulher; um indivíduo de ação contra uma de reflexão; a perspectiva da plausibilidade (o prefeito deveria agir para diminuir desigualdades, dentro da alçada do cargo) e outra de audácia (o prefeito deveria partir para o enfrentamento de instituições reacionárias – através da tal “força tranquila” de Mitterrand). A certa altura da trama, o prefeito pede a Alice para “inventar a grande narrativa democrática dos nossos tempos”. O pedido soa hercúleo, porém encontramo-nos precisamente no campo das ideias – sendo “ideia” uma das palavras mais repetidas pelos diálogos. A presença de uma professora de filosofia no interior da prefeitura soa absurda, quase fabular, mas Pariser assume este senso de inadequação. O espectador é levado a estranhar a simples presença do debate no campo das ações, o que comprova nossos preconceitos quanto aos objetivos e limites de um governo democrático.

Felizmente, a romantização da intelectualidade está distante do projeto. A funcionária não revolucionará a maneira de fazer política, tampouco abrirá a cabeça do prefeito a uma nova percepção do mundo. O iluminismo utópico de uma Sociedade dos Poetas Mortos (1989) passa longe deste debate centrado num cotidiano naturalista, em choque com o pensamento empresarial. Os personagens navegam por caminhos complexos: Paul parece aberto a opiniões contrárias, porém ostenta privilégios e orgulho em relação ao cargo que ocupa; já Alice transita entre a felicidade de ver suas propostas aceitas e a sensação de impotência face à resistência alheia. O texto efetua menções curtas, porém certeiras à vida pessoal de ambos, afetada pelo trabalho na prefeitura. Enquanto isso, a inteligente narrativa encarrega os personagens coadjuvantes de testarem as convicções dos protagonistas: Isabelle (Léonie Simaga) representa o aspecto prático e eficaz, mas também engessado do gabinete; Daniel (Antoine Reinartz) ilustra as formas tradicionais de comunicação institucional, sentindo-se ameaçado pela presença da intelectual; Delphine (Maud Wyler) constitui a visão da arte sobre a capacidade de mudar o mundo, e Xavier (Pascal Rénéric) serve de porta-voz a uma esquerda que nutre profundo desprezo por políticos “profissionais”, considerando-os corrompidos. Diversas vertentes sociais são introduzidas de modo orgânico à trama.

É possível que a pretensão discursiva torne Alice e o Prefeito árido demais, além de verborrágico, ao limite da prepotência. A discussão dos conceitos de Rousseau, Orwell e demais pensadores provoca estranhamento – quantos governantes carregam livros teóricos debaixo do braço? No entanto, Pariser equilibra sabiamente este aspecto pomposo com uma narrativa simples até demais, conduzida por duas figuras despojadas, nutrindo uma relação mista entre o laço profissional e a amizade. A priori, não existe um conflito central neste roteiro – o único, talvez, seria a dúvida acerca da capacidade de Alice em permanecer íntegra às suas crenças, antes de ser engolida pelo sistema. Entretanto, os encontros da dupla central ocorrem em fluxo contínuo, sem que o mundo se interrompa para tal. Alice e Paul conversam sobre Rousseau dentro do carro, a caminho de um discurso, ou rapidamente durante o almoço. O espectador pode ter dificuldade em determinar o tempo exato de permanência da funcionária no emprego, visto que os dias se sucedem rapidamente, jamais provocando rupturas no percurso dos dois. Assim, a conversa se transforma numa finalidade em si mesma, algo apropriado para a imagem da filosofia: embora eles estejam em busca de uma discussão concreta a respeito da gestão da cidade, os conhecimentos obtidos no trajeto servem a abastecer um e outro, preenchendo o “vazio” incômodo ao prefeito.

O filme propõe uma visão inesperadamente melancólica da política contemporânea. O cotidiano no suntuoso prédio em Lyon foge à impressão de algo excitante, importante ou sombrio, a exemplo de tantas representações do dia a dia de líderes eleitos. Escândalos são citados discretamente, sem atingirem as atividades de Alice. A presença desta jovem se converte num parêntese na vida de Paul, uma forma de respiro: ela simboliza a crença na capacidade de algo novo. A filósofa relembra a necessidade da velha política em questionar a si própria, razão pela qual sofrerá tamanha resistência no interior de uma máquina já ajustada. Quem é essa menina, ignorante quanto aos meandros do gabinete, tentando transformar a forma de governar? Pariser oferece um final agridoce aos personagens, mistura de crença no futuro e aceitação de nossas limitações. Ele estabelece uma singela crônica da república, da “coisa pública” no sentido original, atingindo um teor tão reflexivo quanto afetuoso em relação a estes personagens. Fabrice Luchini e Anaïs Demoustier, dois grandes atores de gerações distintas, compõem uma dupla formidável, oferecendo ao colega olhares, hesitações e sugestões ricas, e manejando os espinhosos diálogos com a fluidez de um bate-papo informal. Cenas como a confissão do prefeito de madrugada nos lembram que a política é feita por pessoas iguais a nós, dotadas de vidas privadas, de sonhos não realizados, de equívocos e arrependimentos. O diretor parte do olhar macrossocial (a austera fachada da prefeitura na cena inicial) para se encerrar com a discussão entre duas pessoas sobre suas esperanças e amores. Ele encara a complicada maquinaria de uma prefeitura, mas se interessa de fato às peças que a compõem.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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