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Sinopse

 Aline Dieu, a 14ª filha de uma modesta família canadense, se torna uma das cantoras mais famosas do mundo.

Crítica

Brian May, John Deacon e Roger Taylor, os remanescentes da banda Queen que seguem vivos, participaram diretamente como consultores de todos os estágios de desenvolvimento de Bohemian Rhapsody (2018). Elton John ganhou o seu segundo Oscar pela canção original que compôs para Rocketman (2019), e Madonna chegou a anunciar que ela mesma irá dirigir sua cinebiografia. Ou seja, não há nada de estranho no fato de que grandes estrelas da música queiram acompanhar as adaptações ficcionais de suas próprias trajetórias, não apenas para decidir o que vale ou não ser abordado, mas também para atestar a veracidade dos fatos citados. O curioso, no entanto, é quando o contrário se sucede. Como visto em Aline: A Voz do Amor, filme escrito, dirigido e estrelado pela estrela francesa Valerie Lemercier. Assumidamente inspirado na vida real da cantora canadense Céline Dion, o longa ignora seu nome – em cena, a protagonista se chama Aline Dieu (uma brincadeira entre o ‘Dion’ original e ‘Deus’, em uma tradução direta) – mas todo o resto se mostra tal e qual como ocorreu com a intérprete de clássicos da música romântica, como a oscarizada My Heart Will Go On, de Titanic (1997). Até essas, as canções, permanecem as mesmas. Esse estranhamento, no entanto, é apenas a ponta do iceberg de uma produção rodeada por escolhas, no mínimo, controversas.

Ao invés de se focar em uma passagem particularmente marcante da vida da homenageada, o que geralmente costuma alcançar melhores resultados quando se tratam de adaptações cinematográficas – afinal, como abranger uma vida inteira no intervalo de duas horas? – Lemercier opta por uma condução convencional, que vai do berço até o presente, tentando abraçar um período de mais de cinco décadas. Assim, ao invés de um foco direcionado, o que é oferecido à audiência é uma coletânea de ‘melhores momentos’, por assim dizer, sem se aprofundar em nenhum em particular. Sabe-se que Celine – ou Aline – veio de uma família de muitos irmãos (mais de uma dezena!), tendo sido ela não apenas a caçula, mas temporã, dez anos no mínimo distante do irmão mais próximo em idade. Como todos em casa eram bastante musicais, sua entrada nesse mundo foi relativamente natural, demonstrando talento para tanto desde cedo. Quando uma gravação demo dela é levada por um dos seus familiares a um empresário, percebe-se de imediato que havia na garota algo de especial. Um contrato é assinado, e sua escalada rumo à fama e sucesso tem início.

Celine Dion possui uma fortuna de mais de US$ 600 milhões, é vencedora de cinco Grammys, duas de suas canções ganharam o Oscar, é a segunda artista feminina que mais vendeu nos Estados Unidos, dois dos seus trabalhos são os álbuns francófonos mais vendidos da história, e no total foram comercializadas mais de 250 milhões de cópias dos seus discos. Sua residência em Las Vegas foi a mais bem-sucedida de todos os tempos, a ponto de que o acordo inicial de dois anos foi posteriormente estendido a cinco, com apresentações diárias e sempre lotadas. Possui 12 World Music Awards, 7 Billboard Music Awards e 7 American Music Awards, sem contar os dois doutorados honorários que recebeu (um em Quebec, outro em Boston). Nada disso, no entanto, está em Aline: A Voz do Coração. Ou melhor dizendo, talvez até esteja, mas empilhado no meio de tantas outras coisas sem a mesma relevância, que não será de surpreender que muitos desses fatos acabem passando desapercebidos para a maioria dos espectadores. Nem mesmo um olhar mais íntimo chega a ser proposto: casou com o mesmo empresário que apostou na sua carreira lá no início, quando era uma desconhecida, e com ele ficou durante 22 anos, até ficar viúva. Em certo ponto, chegou a enfrentar uma dificuldade em ter filhos, logo superada: não só teve primeiro um menino, como depois deu a luz a gêmeos.

É de se perguntar, portanto: onde está o drama? O que teria lhe acontecido de errado, quais as dificuldades a serem superadas, quais lições aprendeu durante esse caminho e o que se viu obrigada a abrir mão em nome de outras conquistas? Aparentemente, nada. Sob a ótica de Lemercier, não há conflito algum na jornada de Aline (ou de Celine, enfim). E não que não houvesse pontos a serem abordados. A diferença de idade entre ela e o marido (ele era 22 anos mais velho) é o único ponto a ganhar maior atenção, mais por parte de uma cobrança da mãe dela, mas resolvido após uma conversa franca na qual o homem declara seu amor eterno (o que de fato cumpriu) e aceita entrar na ‘engrenagem Dieu’. Praticamente a família inteira passa a trabalhar para ela – um irmão vira empresário, outro é assistente, uma assume como babá, um cunhado vira cozinheiro – e isso nunca se mostra como uma questão a ser debatida. Até mesmo os alegados problemas de saúde de Celine Dion (discute-se a respeito de uma suposta anorexia, nunca assumida, há anos) são abordados. Ela simplesmente se apresenta como a mulher mais perfeita do mundo, a melhor cantora de todos os tempos e a esposa/filha/irmã/mãe ideal. Ah, claro, mas essa é Aline – e então se percebe que a troca de batismo, mais do que uma tecnicalidade jurídica, se confirma como uma desculpa a evitar comprovações, permitindo liberdades que não encontrariam ressonância na vida real.

Se esse fosse o único problema de Aline: A Voz do Amor, é provável que o filme se mostrasse apenas fraco, frágil em suas construções, revelando limitações aparentes (as cenas de shows e apresentações são, em grande parte, bastante simples e sem muita imaginação, desprovidas de plateia, distante dos espetáculos comuns no cenário pop), mas superáveis. Porém, há algo grave, que é a decisão de Valerie Lemercier em interpretar a personagem-título em todas as fases de sua vida – e são literalmente todas, inclusive na infância, inserindo seu rosto digitalmente no corpo de uma criança. O resultado é tão bizarro, na melhor das hipóteses, que é impossível não se distrair de qualquer outra intenção. Mesmo na juventude, colocar uma mulher de quase 60 anos frente a esse tipo de papel gera mais ruído do que soluções. Não que seja uma atriz deficiente – pelo contrário, percebe-se esforço e comprometimento. É o conjunto que assusta e atrapalha mesmo as melhores das intenções. As discussões entre ela e o marido, por exemplo, a respeito da diferença etária entre eles, chegam a ser risíveis, pois estão sendo defendidas por dois intérpretes da mesma idade! Não há verossimilhança, e por maior que seja a boa vontade da audiência – ou a suspensa de descrença do fã mais ardoroso – será impossível não recair em risos involuntários e num constrangimento alheio que termina por prejudicar a experiência de modo irreversível. É a cereja do bolo de algo que já se mostrava ruim, mas que com isso joga a última pá de cal sobre uma tumba que de modo algum merece ser revisitada.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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