Crítica
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As imagens granuladas mostrando a saída de uma estação de metrô na Alemanha, que acompanham a narração introdutória de Alma Clandestina, possuem um significado trágico, pois foi na estação de Charlottenburg, em Berlim, no dia primeiro de junho de 1976, que Maria Auxiliadora Lara Barcellos, a Dôra ou Dorinha, personagem central deste documentário dirigido pelo português José Barahona, cometeu suicídio. Estudante de medicina, nascida em Minas Gerais, Dôra ingressou na militância política no final dos anos 1960, terminando presa, torturada, banida e obrigada a viver no exílio, seguindo uma trajetória que se assimila a de muitos outros brasileiros que se opuseram à Ditadura Militar então instaurada no país – “Pense que não é só ela. É uma representação baseada em muitas mulheres da guerrilha, da resistência”, afirma um personagem logo nos primeiros minutos de projeção.
Por mais que se proponha a expandir seu olhar sobre o contexto geral, das feridas ainda não plenamente cicatrizadas deixadas pelo regime opressor, é mesmo no retrato particular da figura carismática de Dôra que Barahona se concentra. Em sua investigação, o cineasta, após uma primeira incursão pela ficção em longas-metragens com Estive em Lisboa e Lembrei de Você (2015), opta por um desvio, a princípio salutar, do registro documental tradicional, e muitas vezes protocolar – de entrevistas individuais, nos quais os depoentes falam diretamente para as câmeras, e de imagens de arquivo – mesclando-o a fragmentos de dramaturgia, de uma narrativa ficcional, trazendo a atriz Sara Antunes para dar voz, e vida, às cartas escritas por Dôra para seus familiares, bem como a dois textos literários de sua autoria, “Continuo Sonhando” e “Buti”. A fusão almejada por Barahona, porém, acaba indo além, adentrando o caminho metalinguístico na forma da encenação de um processo criativo.
Pois Sara Antunes surge não apenas como uma intérprete das palavras de Dôra, mas também como uma atriz responsável por representá-la e em uma montagem teatral, lutando para mergulhar, e se encontrar, no papel com o auxílio do diretor/autor da peça (vivido por Paulo Azevedo). Ainda que seja possível traçar um paralelo claro e pertinente entre o ofício da atuação e a trajetória de Dôra – obrigada a vestir diferentes personas, reinventando a si mesma a cada novo capítulo de sua vida na clandestinidade, no Chile, México, França, Bélgica e, por fim, na Alemanha – essa parcela de dramaturgia teatral da trama se apresenta inconsistente, pouco acrescentando ao estudo de personagem, e carregada ainda de uma artificialidade que gera certo ruído, destoando da humanidade transmitida nos relatos dos entrevistados e pelos materiais de arquivo que dão voz à própria protagonista.
Da mesma forma, soa pouco natural a tentativa de Barahona de impor uma atmosfera poética e sensorial à experiência através de um experimentalismo estético – com a sobreposição de narrações e de imagens projetadas na tela ao fundo do palco onde a atriz e o diretor ensaiam a peça – que resulta excessivo, no qual a desejada força lírica perde seu impacto e gradativamente se esvai, tornando-se um mero adereço. Entretanto, e felizmente, em meio a esses floreios estilísticos, o trabalho de Sara Antunes se impõe, carregando de emotividade a interpretação do conteúdo íntimo das cartas de Dôra, que deixam, assim, revelar a verdadeira face da personagem, bem como a sincera imersão da atriz no papel, compartilhando de modo passional de suas angústias, alegrias, medos e dor.
Esse vigor se faz presente também na parcela documental mais pura de Alma Clandestina que, com uma montagem hábil, intercala os depoimentos dos entrevistados às falas de Dôra presentes nos excertos do documentário Brazil: A Report on Torture (1971), de Haskell Wexler e Saul Landau, e também de dois registros – Quando Chegar o Momento e No és hora de llorar – realizados por Luiz Alberto Sanz, cineasta e amigo da biografada. Tais cenas servem para a compreensão mais aprofundada da personalidade, como também do fascínio exercido por essa mulher alta, imponente, divertida e articulada, admirada por aqueles que a rodeavam – o momento em que o diretor fictício da peça nota como a câmera do documentarista não desgruda do rosto de Dôra, após encontrá-la ao fundo do plano em que outros militantes são entrevistados, exemplifica bem esse magnetismo.
Mesmo que talvez não dê conta de expor a plenitude de personagem tão complexa – como as próprias colegas do curso de medicina a definem – o longa termina por se mostrar suficientemente eficaz na construção de uma figura trágica, dilacerada, com efeito tardio, pelo horror da repressão e pela saudade profunda, que “arranca um pedaço da alma”, de seu país e família. Um retrato individual, mas que serve à manutenção de uma memória histórica coletiva que não se pode deixar ser apagada.
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