Crítica

Nenhum dos filmes estrelados por Marilyn Monroe possui uma cotação negativa no Rotten Tomatoes, site que reúne as opiniões dos principais críticos norte-americanos (e de alguns estrangeiros), oferecendo uma média para cada título. Aquele com a cotação mais baixa (64%) é O Rio das Almas Perdidas (1954), enquanto que três deles dividem a aprovação máxima (100%): A Malvada (1950), em que ela finalmente se fez notar, Os Desajustados (1961), seu último trabalho, e esse Almas Desesperadas, uma obra que se destaca por vários motivos: foi o a estreia da atriz como protagonista, é um dos seus únicos longas em que interpreta uma vilã (e não a mocinha sexy, imagem que a eternizou), e também por ser o primeiro filme de Anne Bancroft, que somaria cinco indicações ao Oscar em toda a sua carreira, tendo ganho por O Milagre de Anne Sullivan (1962), além de ter ficado eternizada como a icônica Mrs. Robinson, de A Primeira Noite de um Homem (1967).

Mas o foco aqui é Marilyn, e é no mínimo curioso conferi-la no papel da desempregada que ganha uma chance como babá de uma menina enquanto os pais dessa se divertem no salão de bailes do hotel em que estão hospedados. O filme é bastante curto – são menos de 80 minutos de duração – mas a trama se desenrola de modo tão objetivo e preciso que é praticamente impossível não se envolver com as atitudes dessa moça desequilibrada e inconstante. Quem a chama para o serviço é o tio, que trabalha no mesmo local como ascensorista. Ele estará constantemente ao seu redor, cuidando para mantê-la no caminho certo. Mas sua vigilância não será suficiente para impedi-la de conhecer Jed (Richard Widmark, que alguns anos antes havia sido indicado ao Oscar como Coadjuvante por O Beijo da Morte, 1947), um piloto em plena crise amorosa. Ele acabou de receber um fora da namorada (Bancroft), que trabalha ali como cantora. Sozinho em seu quarto, se anima ao ver a jovem bem vestida na janela do quarto ao lado. O que ele não desconfia é que aquela garota não é nem de longe quem ele imagina.

Após colocar a menina que deveria cuidar para dormir, Nell (Monroe) se sente tranquila para remexer nas coisas do casal que a confiou a própria filha. Quando é vista pelo vizinho galanteador, está vestindo as roupas e as joias da senhora, e não as suas. Ali começa um jogo de mentiras e ilusões que irá por fim a qualquer resto de sanidade que ainda possuía. Um trauma do passado, envolvendo o noivo falecido em plena guerra, a pressão dos familiares e a falta de perspectivas futuras irão desenvolver em sua mente um cenário bastante distante da realidade, e quando aquele homem se der por si, o que vislumbrava ser apenas uma aventura de uma noite resultará numa luta pela sanidade – e pela vida daqueles ali próximos, principalmente a dos mais ingênuos e frágeis. Afinal, a bela e sedutora aranha que o atraiu até sua rede irá fazer de tudo que estiver ao seu alcance para manter aquela fantasia desenvolvida apenas na sua imaginação.

Almas Desesperadas é um título muito forte e exagerado para uma história absolutamente teatral, filmada inteiramente em estúdio e dentro dos padrões mais tradicionais da época. De forma alguma pode figurar entre os clássicos da diva, mas se posiciona com destaque entre os seus trabalhos mais curiosos e interessantes. Aqui percebemos pela primeira vez que Marilyn ansiava ser mais do que a embalagem que vendia. Havia conteúdo naquela intérprete, um anseio por se arriscar e muita vontade de fazer coisas diferentes e ousadas. Nem sempre o tiro era certeiro, mas, principalmente sob a ótica do que se passou depois, verificamos aqui que cada esforço era válido e se justificava como parte da construção deste mito imortal.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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