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Sinopse

Primeira e única mulher a governar o Brasil, Dilma Rousseff observa a dramática iminência do impeachment. Da intimidade do Palácio da Alvorada às várias reuniões, ela faz se mantém firme enquanto um golpe está em curso.

Crítica

É sintomático que os três retratos mais íntimos do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff provenham de cineastas mulheres: O Processo (2018), de Maria Augusta Ramos, Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, e Alvorada (2020), de Anna Muylaert e Lô Politi. O conjunto de filmes se torna ainda mais rico ao percebermos que as diferenças radicais de abordagem, embora todos denunciem o machismo e a farsa da destituição da presidenta. Maria Augusta Ramos aposta num retrato cirúrgico do debate judicial, estudando o aparato legal montado pelo PT para se defender da ofensiva conservadora. Petra Costa privilegia o cinema pessoal, voltando-se aos impactos deste episódio na vida dos cidadãos brasileiros. Já Muylaert e Politi preferem uma rara abordagem institucional, acompanhando o funcionamento do Palácio da Alvorada por dentro, com seus manobristas, faxineiros, cozinheiros, secretários, vigias e assistentes. Trata-se de olhares complementares, oferecendo pontos de vista distintos à guinada do Brasil rumo à direita e à extrema-direita. Em resposta à voz do empresariado e da mídia hegemônica, esforçada em legitimar o impeachment sem crime de responsabilidade, estes filmes apresentam outro lado da moeda.

O melhor aspecto do documentário se encontra em sua personagem principal. Muitas vezes longe dos holofotes, durante conversas de bastidores e esperas entre reuniões e entrevistas, a presidenta demonstra profundo conhecimento de história, literatura e política. Ela discursa sobre o perigo reacionário com lucidez e resiliência impressionantes. Quem espera choro, desespero ou gritos encontrará uma personalidade pública de solidez inabalável diante dos adversários. O principal trunfo das cineastas se encontra na única entrevista exclusiva com Dilma, diluída pela montagem ao longo de todo o filme. Inteligente e sensata, faz um comentário de duplo sentido para citar tanto seus passeios de bicicleta quanto a recusa de renunciar (“Eu não desequilibro”) e evita demonizar os articuladores da queda, como Michel Temer, Aécio Neves e Eduardo Cunha (“O mal tem que ser uma construção de ficção”, afirma, no que valeria para a próxima demonização do PT). Em paralelo, o olhar da direção capta o carinho dos funcionários pela presidenta e a solidariedade prestada após a ratificação do golpe. A possibilidade de acompanhar estes momentos de dentro do Palácio, ao vivo, reitera a força da mulher que saiu de cabeça erguida, sustentando sua inocência e alertando sobre os perigos para a democracia que se confirmariam poucos anos mais tarde.

Em contrapartida, as escolhas técnicas e estéticas prejudicam demais a experiência. Os diretores de fotografia César Charlone e Lô Politi trabalham com uma imagem inexplicavelmente instável e indecisa. Eles optam por uma câmera no ombro que treme a todo instante, perde o foco, faz zooms agressivos, desliza a esmo entre os rostos de uma entrevista ou entre os carros saindo do Palácio, buscando o veículo onde se encontraria a presidenta. Esta incômoda câmera-paparazzi filma de modo improvisado, seja no salão ao lado, por frestas, ou em cantos espremidos dos cômodos, tentando driblar outros corpos. Alvorada não transmite um conceito estético unificado a respeito de como filmar, nem do que filmar: uma vez no interior do palácio, imersa na turbulenta crise política, a equipe volta aos olhos àquilo que consegue, tentando se ajustar às evidentes restrições impostas por Dilma. O agenciamento das imagens resulta caótico e afobado, como se as criadoras estivessem descobrindo cada reunião ou entrevista na hora, sem planejamento. Aparentemente, nenhuma cena contou com booms, lapelas ou outra forma de microfonar os personagens, razão pela qual a qualidade do som é bastante fraca, produzindo alguns diálogos incompreensíveis.

O olhar institucional relembra os bons momentos do cinema de Frederick Wiseman, documentarista que, diante desta situação, também mergulharia na cozinha, na garagem e nos bastidores do poder. No entanto, o norte-americano organiza o caos à sua frente através de planos fixos e silenciosos, dispostos a observar durante horas até alguma faísca estética ou algum conflito se produzir à sua frente. O projeto brasileiro tenta perseguir o conflito, ficando refém de seu tema, correndo (literalmente, quando Maria Augusta Ramos chama as diretoras) atrás daquilo que o dia a dia no palácio possa oferecer. Apenas na segunda metade o documentário encontra sequências mais elaboradas: durante o discurso de Dilma ao Senado, a câmera permanece nas coxias, observando uma sucessão de funcionários colados à televisão. A montagem respira, e o discurso enfim expressa a apreensão do momento sem precisar se apertar no canto de alguma reunião. Os fatos principais deste episódio são conhecidos, e ficarão para sempre na história do país. Por isso, Alvorada interessa menos pelo resgate fatual e jornalístico (o veredito da Câmara, a fala de Bolsonaro em defesa do torturador de Dilma) do que pelos instantes de poesia, quando um urubu fica preso no hall interno, batendo-se contra o vidro.

Limitações à parte, o projeto se encerra com uma bela sequência, funcional em termos de significado, e muito bem montada. Pela espera da chegada do documentário aos festivais (ele foi filmado em 2016), esperava-se um trabalho mais afinado tecnicamente, com maior apuro na pós-produção (os letreiros contêm erros de digitação como “29 de agostos”). As autoras não fornecem qualquer revelação a respeito deste processo, nem sobre as atitudes da presidenta durante os últimos dias de seu governo. Elas tentam forçar certa gravidade pela trilha sonora grandiosa de Villa-Lobos, no entanto o tom predominante será aquele de nostalgia pelo esvaziamento literal do palácio com a retirada de móveis e objetos após o golpe. Por um lado, as cineastas evitam a armadilha da constatação do óbvio e da simples denúncia – caso de Excelentíssimos (2018) e Operações de Garantia da Lei e da Ordem (2017). Por outro lado, diante da oportunidade valiosa de estar no centro do furacão, hesitam quanto ao discurso que pretendem veicular. Neste sentido, a obra se torna menos coesa do que O Processo e Democracia em Vertigem, filmes que, com suas qualidades e defeitos, possuem um objetivo e um modus operandi precisos. Alvorada se soma a estes e outros documentários (incluindo Futuro Junho, 2015, Abismo Tropical, 2018, O Mês que Não Terminou, 2019) na tentativa de compreender um país estraçalhado, ainda na ressaca do ataque à democracia. Sendo o único filme do grupo a estrear na segunda metade do governo Bolsonaro, quando mais de 340 mil brasileiros morreram de Covid-19 por negligência do planejamento federal, ele reforça a sensação de que o Brasil jogou fora um plano progressista por acreditar numa elaborada e onerosa fake news.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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