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Crítica


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Sinopse

Vidigal é um artista que morreu após uma crise convulsiva seguida de falta de atendimento. A fatalidade interrompeu as filmagens que pretendiam valorizar a sua inteligência criativa.

Crítica

Amador (2020) parte de duas vantagens: a construção do retrato de um artista pouco reconhecido nacionalmente traz certas liberdades à diretora Cris Ventura, assim como fato de terem sido amigos desde a infância. A cineasta não transparece pressões para dar conta de uma carreira extensa, de todos os trabalhos de Jônatas Amador, nem de “honrar” o evidente talento do cantor, performer e artista plástico. Pelo contrário, ela desenvolve o filme junto de seu protagonista, privilegiando conversas  informais. Quando ele tece comentários sobre o corte de cabelo, ou algum artista em particular, a diretora responde, emite opiniões, fala de sua própria mãe. Mesmo fora de quadro, ela nos lembra que existe uma subjetividade por trás da câmera, além de um dispositivo que toma o tempo de estabilizar a câmera no tripé diante dos olhos do público. A solenidade esperada do filme-homenagem desmorona diante de tamanha intimidade entre diretora e ator. A propósito, ela revela uma concessão para que o amigo concordasse com o projeto: ele seria visto apenas em estado de sobriedade. Negociações do tipo ocorrem em qualquer obra, mas raras vezes são compartilhadas com o público.

A morte de Vidigal em 2019 acrescenta novos significados ao processo. Primeiro, os registros das conversas e das performances em bares adquirem o caráter retroativo de testamento, como se tivessem sido realizados visando a posteridade. Segundo, o filme amplia as noções de temporalidade e ponto de vista: trata-se de uma obra ao mesmo tempo ao vivo e no passado. Enquanto filmava o colega, Ventura não poderia saber da tragédia que lhe ocorreria pouco tempo depois. Quando interromperam as gravações, devido à distância entre ambos, tampouco podia prever que esse fator influenciaria o filme. O artista terminou por condicionar o roteiro e a montagem, ao invés de ser condicionado por eles. Este é o caso em que o cinema se acomoda ao mundo, em oposição a tantos projetos onde o diretor concebe um mundo, para em então recriá-lo diante das câmeras. No entanto, a estrutura se distancia dos documentários iniciados após a morte de uma pessoa, impregnados de saudade e pesar. Ao contrário da nostalgia, as conversas transparecem expectativas para o futuro. Ao espectador, consciente da morte de Vidigal, surge um sentimento belo e triste ao se deparar com o jovem cheio de ideias e vontades.

Em sinal de respeito ao amigo, Ventura elabora uma obra desconexa, ousada, “bipolar” - o personagem sugeria que sua criação estaria intimamente ligada ao distúrbio. O filme segue esta linha: na primeira metade, opta por um percurso errático, fragmentado, incluindo um pseudo-clipe para Soluços, de Jards Macalé, ilustrado por Jônatas. Sequências noturnas provocam estranhamento ao longo das andanças em preto e branco, em lentes grandes-angulares, visitando becos e sarjetas. Na segunda metade, a imagem sai das ruas, acalma-se, e decide escutar o que o artista tem a dizer sobre si próprio, sentado no sofá de casa. A montagem acolhe uma longuíssima entrevista, com poucos cortes, onde Jonatas costura infância, arte, relacionamentos amorosos, vida nas ruas. Quando mencionam o “grande amor” secreto do protagonista, ele se vira à cineasta: “Você já deve até saber quem é, né?”. Existe um caráter de cumplicidade raro dentro do registro documental, como se, ao invés dos fatos e as passagens mais importantes da trajetória do performer, estivéssemos acessando sua intimidade, ainda que repleta de pudores. Jônatas é um personagem fascinante, capaz de declamar um poema sexualmente explícito e se urinar em público, enquanto protege a identidade do amor de sua vida.

Em paralelo, Amador rompe com a estrutura dos talking heads ao impedir que outros rostos assumam o protagonismo das cenas. Amigos e colaboradores oferecem suas impressões sobre Vidigal enquanto narradores em off, sobrepostos a imagens do protagonista. Estas falas jamais vangloriam o artista, apenas o descrevem, ou buscam entendê-lo. Para um projeto nutrido por tanto afeto, a diretora institui louvável distanciamento, evitando o tom elogioso e o mergulho nas circunstâncias da morte. Ela privilegia um diálogo entre estéticas e sensibilidades semelhantes. As imagens revelam uma flor oferecida simbolicamente à cidade, além do retorno à cena inicial. Assim, a narrativa não chega a um fim: o documentário tem receio da finalidade e da finitude, preferindo se encerrar de modo cíclico. Singela escolha cinematográfica: no registro imagético, pelo menos, Vidigal nunca morreu, nem enfrentou problemas de sobriedade. Sabemos que os dois fatores aconteceram, porém a diretora estabelece um pacto para não mencioná-los. Passemos a outra coisa, pode ser? Existe uma honestidade artística notável neste gesto.

Por fim, desenha-se uma figura complexa, inteligente e orgulhosamente marginal. A entrevista com Vidigal, repleta de precauções “amadoras” de enquadramento e luz (o microfone visível no quadro, a mudança do preto e branco para o colorido no meio do plano), comprova a crença da diretora no valor do cinema. Poucos criadores ousariam embutir uma cena tão extensa, correndo o risco de prejudicar o ritmo narrativo e soar inconsistente. Ventura acredita que o protagonista desperta interesse a ponto de dominar sozinho a fala e a estética, sem embelezamentos de pós-produção, sem acréscimo de trilha sonora, sem ajustes valorizadores de luz ou maquiagem. Talvez este seja o maior elogio prestado ao amigo: a confissão de que sua presença, conversando sobre arte ou sobre amenidades, bastaria para preencher um longa-metragem. Durante a conversa, ele também efetua uma performance: existe uma persona aliada ao personagem, algo de que tanto Vidigal quanto Ventura estão cientes. O jogo entre valorizar o artista por sua imagem ou pela ausência dela, entre representá-lo ou deixar que ele o faça por si mesmo, proporciona uma experiência marcante.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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