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Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

​Diante do fracasso do governo brasileiro em proteger a Amazônia, índios e ribeirinhos, em uma união inédita liderada pelo Cacique Juarez Saw Munduruku, enfrentam máfias de roubo de terras e desmatamento ilegal para salvar a floresta.​

Crítica

O documentário se abre com letreiros explicativos a respeito da taxa acelerada de desmatamento na Amazônia, com auxílio de dados e porcentagens. O procedimento tem se tornado um padrão para projetos de cunho informativo, buscando condicionar o olhar do espectador desde o primeiro minuto. Poderíamos observar a floresta do alto e talvez deduzir, por nosso próprio ponto de vista, que uma área significativa está destruída. No entanto, o filme não pretende abrir brechas a ambiguidades, nem confiar no senso de dedução do espectador. Assim, trata de informá-lo sobre uma realidade que supõe desconhecida pelo interlocutor, fornecendo índices que comprovem a afirmação e cenas que atestem a gravidade do problema. Não há nada errado nesta estrutura, ainda que desgastada enquanto porta de entrada a um tema. Ela revela a iniciativa de pegar o espectador pela mão e dizer: “Vem cá, vou te contar o que realmente está acontecendo”. Ora, quem seria capaz de discordar daquela porcentagem exata, de fornecer contraexemplos a partir de fontes distintas? O procedimento didático de documentários explicativos se torna tão generoso quanto retórico.

Passadas as apresentações formais, ou seja, a constatação do problema, Amazônia Sociedade Anônima (2019) impressiona pela beleza das imagens. Os diretores de fotografia Dudu Miranda e Daniel Venosa não estão interessados na estética da urgência, do tipo que emprega câmera da mão enquanto busca freneticamente por madeireiros ou grileiros. Muito pelo contrário, eles tomam o tempo de compor planos cuidadosos, com uma profundidade de campo reduzida, onde cada elemento dentro do quadro está impecavelmente iluminado, seja um índio, um funcionário do Ibama ou apenas os componentes da natureza local. A construção estética demonstra tamanho controle sobre os arredores que, ironicamente, beira a ficção. Quando o documentário explora sequências em câmera lenta, belas tomadas aéreas e personagens ao pôr do sol, chegamos ao limite entre o realismo e a idealização: a partir de qual ponto um documentário de viés político se transformaria em olhar exótico às maravilhas do mundo, em estilo Globo Repórter ou Discovery Channel? Felizmente, o diretor Estêvão Ciavatta e o editor Bernardo Pimenta nunca permitem que estes instantes se arrastem e constituam o ponto central da narrativa. O viés adotado pelo cineasta é de ordem claramente humanista, fazendo do projeto uma denúncia sobre as infrações ambientais cometidas no norte do país.

A referência a programas de televisão não é anódina: o filme flerta em diversos momentos com o jornalismo investigativo, a exemplo dos longos trechos de escutas telefônicas, indicando conversas entre grileiros e empresários, e da sequência de uma ação do Ibama, ao vivo, culminando na detenção provisória de trabalhadores ilegais. Caso dependesse unicamente destes momentos, estaria restrito à sensibilização pela emoção. No entanto, o roteiro se mostra mais ambicioso ao equilibrar informação, ativismo (encerra-se com o letreiro “Junte-se a nós”, seguido do site do projeto) e contemplação da natureza. Os melhores momentos surgem da observação simples do cotidiano, quando um líder indígena observa o mapa da área autodemarcada para seu povo, ou quando membros da comunidade erguem uma placa avisando aos grileiros dos limites de suas terras. Nestes momentos, transmite-se muito sem palavras, narrações nem entrevistas: a imagem se encarrega de toda a contextualização necessária. Mesmo assim, há entrevistas pontuais, fortes e bem editadas, com especialistas em proteção à natureza. Estes apresentam informações válidas a partir de uma entonação calma, argumentativa, muito distante do furor panfletário.

Ao longo de curtos 72 minutos de duração, a narrativa explora bem a apropriação das terras por criminosos, a dificuldade em prendê-los e o trabalho paliativo das instâncias de proteção locais. Há numerosos exemplos, múltiplas imagens de terrenos preservados ou queimados, gráficos elegantes e uma trilha sonora tão competente quanto discreta. Trata-se de uma produção dotada de recursos e marcada por visível empenho. Ela demonstra familiaridade com a tarefa árdua de filmar dentro da floresta, ao mesmo tempo em que se revela confortável no retrato das comunidades indígenas em posicionamento de proximidade e respeito, porém sem pretender falar pelos índios. O paternalismo na relação com o espectador não se estende às comunidades locais, abordadas como as únicas detentoras de real conhecimento sobre a situação na Amazônia. O filme nunca precisa recorrer ao maniqueísmo, nem ao espetáculo, para caracterizar a situação: Ciavatta parte de uma falha sistêmica que se desenvolve há muitos anos e não choca mais ninguém. Quando índios, antropólogos e juristas mencionam a invasão de terras, eles o fazem com a placidez de quem enfrenta conflitos do gênero diariamente.

Mesmo assim, alguns aspectos da investigação sociopolítica poderiam ser aprofundados. Uma fala rápida sugere que a situação está pior “no atual governo”, porém haveria elementos suficientes para mencionar presidentes, governadores, prefeitos e outras pessoas específicas, tanto aquelas que atuam para proteger quanto para destruir o meio ambiente. Por que tamanha aversão em mergulhar na política partidária? Que papel a mídia desempenha na normalização do desmatamento, ou na omissão de informações? O que teriam a dizer famílias removidas de seus terrenos, ou sobreviventes de enfrentamentos com grileiros? Caso acompanhasse algumas tarefas diárias na vida dos índios, o diretor perceberia reflexos diretos desta pressão política nos laços familiares, nos relacionamentos amorosos? A fala cínica de um defensor do agronegócio – segundo o qual sempre se desmatou durante a História, portanto, não haveria problema em continuar – fornece uma bem-vinda fricção ao discurso até então unilateral. O projeto poderia provocar mais pontos de atrito pela montagem, capazes de aprofundar a complexidade da situação. Ainda assim, transmite com clareza a sua mensagem, posicionando-se do lado dos protetores da natureza e dos indígenas, torcendo pela conscientização a partir do projeto. Há um aspecto belo, utópico e quixotesco nos documentários que esperam não apenas reforçar as convicções do campo progressista, mas também conscientizar o lado oposto, que dificilmente se renderá à projeção de um filme semelhante. Ora, pelo menos não se pode acusá-lo de não tentar, com muita boa vontade e refinamento de linguagem.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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