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Crítica


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Sinopse

No ano 2242, a Terra entra em colapso. Sofrendo com fome e doenças, a população decide colonizar outro planeta, batizado de Nova Terra. No entanto, apenas 50 milhões de pessoas sadias são autorizadas nos voos espaciais. Quando sua namorada grávida é autorizada para a viagem, Noah encontra uma maneira de entrar na nave como penetra. Pouco tempo depois, toda a tripulação descobre a presença de uma criatura maligna a bordo, capaz de transformá-los em zumbis.

Crítica

Existe um tipo de fascinação produzido apenas pelos filmes péssimos. Ela não ocorre com as produções fracas, quando um ou outro fator se destaca negativamente (as atuações, a fotografia, o roteiro etc.), mas com aqueles casos raros de obras espetacularmente ruins. Trata-se de filmes em que as atuações são risíveis, o roteiro desperta gargalhadas, a direção de arte, a fotografia e a montagem são amadoras. Nas comédias trash, esses recursos podem ser utilizados a favor do resultado, em especial dentro das variantes do horror. Em oposição, quando a baixa qualidade foge à estética autoconsciente, ela desperta dúvidas: a equipe acredita ter feito um bom filme? O resultado saiu como planejado – ou seja, era isso que queriam fazer? Como tantas coisas podem ter dado errado: nenhum produtor se alarmou com os problemas com a direção de arte, ou da fotografia? O roteiro, que passou por diversas mãos até ser aprovado e entrar em fase de produção, agradou a todas as pessoas? O diretor observou aquelas atuações durante as filmagens e disse: “Ótimo! Seguimos em frente”? Diante destes exemplares catastróficos de cinema, surge um questionamento a respeito da própria cadeia criativa, algo que gerou profunda curiosidade pelos infames Plano 9 do Espaço Sideral (1957) e The Room (2003), entre outros.

Ameaça no Espaço (2020) se junta a este grupo. Nada se salva em meio à realização. O roteiro, a respeito de tripulantes viajando rumo à Nova Terra, deixando para trás um planeta em colapso, possui uma quantidade impensável de furos, incongruências e absurdos. Os personagens possuem a profundidade de uma esquete cômica, resumindo-se a uma ou duas características principais. É difícil distinguir os faxineiros dos médicos, engenheiros e pilotos, visto que vestem macacões quase idênticos. Já os 300 mil terráqueos (dos quais vemos cerca de vinte pessoas, no máximo) usam camisetas brancas comuns, daquelas encontradas em lojas de departamento. Sem verba para construir uma nave suntuosa, os espaços se limitam a três corredores e duas salas de dimensões modestas e aparência idêntica: paredes cinzas, objetos cinzas, chão e teto cinzas. Até surgir uma ameaça interplanetária, os personagens têm pouco a fazer, por isso, limitam-se a perambular de um corredor ao outro. O comandante da nave, inexplicavelmente, dorme numa cápsula. Quando a criatura alienígena invade o espaço, a história nunca se pergunta de onde vem, o que deseja, nem de que maneira pode ser contida. Caberá ao faxineiro principal, ao mecânico e à única médica pegarem em armas e salvarem o resto da humanidade.

A lista de problemas continua. A direção de fotografia ressalta a pobreza na construção do cenário; a montagem falha na tentativa de imprimir ritmo e estabelecer diferentes dinâmicas de espaço (os personagens viram um corredor e parecem voltar ao local de antes); os efeitos especiais são ruins como num programa da televisão aberta – aqueles de canais menos populares. Bruce Willis constitui o único nome realmente conhecido no elenco, demonstrando comprometimento mínimo com o projeto. O ator entrega as frases de efeito no piloto automático, encarnando o sujeito malandro com um aspecto canastrão, evitando embutir qualquer profundidade ao herói. Os colegas o acompanham neste registro: Cody Kearsley encarna o mocinho com permanente expressão de tédio (embora esteja a bordo da última viagem perigosa); Rachel Nichols interpreta uma médica desprovida de conhecimentos básicos de anatomia, e Thomas Jane, em papel secundário, se converte num capitão-caubói, do tipo que dispara frases machistas e veste os óculos de sol dentro da nave.

O filme se encontra próximo da comédia assumida, caso em que renderia uma experiência divertida. No entanto, o diretor John Suits preserva a seriedade da narrativa, sem escancarar as falhas, nem as referências de Alien, o Oitavo Passageiro (1979). Ora, uma das principais vantagens das produções de baixíssimo orçamento se encontra na liberdade criativa, permitindo elaborar metáforas e alternativas à impossibilidade do espetáculo. O cineasta poderia esconder o monstro durante tempo considerável, a exemplo de Alien, ou sugerir medo pelos sons e pelas ações fora de quadro. Entretanto, conduz o projeto como se tivesse um orçamento muito maior do que aquele disponível, ignorando a carência de recursos em diversas sequências (em especial, no último terço). Para uma obra tão amadora, falta o vigor e o senso de inconsequência comuns a estas iniciativas. Ameaça no Espaço resulta numa produção sem criatividade nos cenários e no enredo; sem humor (voluntário, pelo menos), e sem reais ambições cinematográficas. É difícil apontar algum elemento que não tenha sido executado ou de maneira mais eficiente, ou escancaradamente ridícula, em produções anteriores. O resultado provoca a sensação de desperdício – o que motivou todas as pessoas envolvidas a criarem este filme?

Resta saber se, a exemplo de Plano 9 do Espaço Sideral e The Room, ou ainda de A Reconquista (2000) e Glitter: O Brilho de uma Estrela (2001), este projeto possui a capacidade de ser tão ruim a ponto de oferecer uma sessão marcante, integrando-se à cultura popular, sendo citado e ressignificado ao longo dos anos. Talvez o pior resultado para uma iniciativa deste gênero se encontre no esquecimento, não sendo lembrada nem pelos méritos, nem pela capacidade de marcar uma geração. Se fosse lançada na época dos VHS, ocuparia a prateleira escondida de alguma videolocadora. Em tempos de streaming, a obra se posiciona lado a lado com blockbusters. Em consequência, é descartada com a velocidade típica das trocas de conteúdo em plataformas e smartphones. Grande ironia dos nossos tempos velozes: nem as produções péssimas ganham a oportunidade de serem admiradas (e ridicularizadas, comentadas, parodiadas) por seu público antes de se perderem no acervo digital ainda mais numeroso dos serviços digitais. Para o cinéfilo capaz de apreciar a diversão de um filme péssimo (com abertura para se espantar e se perguntar: “Como raios fizeram algo desse nível?”), Ameaça no Espaço pode empolgar – mesmo que seja para depois se virar a um amigo e dizer: “Você não vai acreditar no filme que eu vi ontem!”. Já é alguma coisa.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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