Crítica
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Sinopse
A história dos Estados Unidos é recheada de mistérios e não ditos. Quem construiu o país e por quê? Um salvador que não tem lá muita vocação para a coisa reúne um grupo heterogêneo de notáveis em prol da liberdade.
Crítica
Pode-se dizer que America: The Motion Picture é um exercício de subversão histórica construído propositalmente a partir de lugares-comuns do cinema. Pegando carona numa tendência que não engrenou, a de reimaginar personagens eminentes em contextos fantasiosos e absurdos – como em Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros (2012) –, a animação dirigida por Matt Thompson reinterpreta a conturbada passagem dos Estados Unidos ao status de república independente. Para isso, faz uma salada repleta de ingredientes corrosivos, a começar pela natureza dos personagens, sobretudo os que comandaram a revolução. A nação mais proeminente da América do Norte é fruto da aliança entre: o menos esperto dos amigos que sonhavam com a mudança; o fortão desmiolado cuja redenção está em deixar (um pouco) de ser racista; o cavaleiro voluntarioso com traços de retardo intelectual; a mulher que defende a ciência, constantemente confundida com uma bruxa ardilosa; o chefe indígena que acaba virando coadjuvante dos “brancos salvadores”; e o ferreiro negro. A despeito de sua importância para os planos darem certo, este personagem é frequentemente subalternizado e precisa encarar piadinhas pejorativas de duplo sentido. Nas relações entre essas figuras há momentos de crítica escancarada. No entanto, o olhar cáustico também está em apontamentos mais sutis.
Outro pilar de America: The Motion Picture é o próprio cinema. Matt Thompson e sua equipe utilizam chavões cinematográficos para justamente fazer chacota da sua repetição e, ao mesmo tempo, situa-los como fundamentos da cultura audiovisual estadunidense. A intenção de George Washington (voz de Channing Tatum) é idêntica a de vários heróis dos filmes de ação: vingar o amigo mais qualificado do que ele para promover a independência, assim compensando sua falta de habilidade com uma vontade quase inabalável. Em certo momento, ele chega a citar a motivação que atende voluntariamente a um clichê. Outra convenção destacada é o comportamento de Martha Washington (voz de Judy Greer), mulher que surge repentinamente caindo de amores pelo protagonista bonitão. Logo ela é destituída de subjetividade e passa a existir somente para motivar o homem prestes a esmorecer. A intenção evidente é lançar um olhar de reprovação a esse modelo de representação feminino tão restrito quanto ultrapassado. Aqui ele é reproduzido com claros sinais de caricatura, haja vista a futura primeira-dama se transformando literalmente na Estátua da Liberdade: petrificada e restrita a ser um símbolo de encorajamento. Na esteira disso, há a visão cáustica dos Estados Unidos e do cinema da terra do Tio Sam. A metalinguagem reforça pontualmente a noção de autoconsciência.
A utilização do lugar-comum como gesto crítico é perceptível nos demais arquétipos e estereótipos trabalhados, mesclados em observações absurdas. George Washington não tem a grandeza pressuposta por seus feitos, estando mais próximo de alguém empurrado pelos desejos alheios. Seu imediato, Samuel (voz de Jason Mantzoukas), é agressivo, tipificado como um daqueles brutamontes de fraternidades universitárias regadas a cerveja, babaquices e misoginia. Aliás, a inversão de gênero de Thomas Edson (voz de Olivia Munn) é uma jogada excelente em America: The Motion Picture. O discurso duplamente progressista é sintetizado nessa jovem decalcada do Homem de Ferro, preocupada com a marginalização da mulher e as tentativas de obscurecer a validade da ciência. Ao lado dela, Geronimo (voz de Raoul Max Trujillo) e Blacksmith (voz de Killer Mike) denunciam, com suas vivências, a exploração das minorias em prol das causas chefiadas por homens brancos apenas menos escrotos do que os vilões ocupando o poder – nesse caso, os britânicos. A ironia é evocada e sublinhada quando o indígena se convence da necessidade de lutar contra os estrangeiros que dizimaram os colonos do continente americano. Deboche puro, pois o nativo está batalhando ao lado de futuras lideranças norte-americanas que não serão muito diferentes no trato com seu povo.
America: The Motion Picture apresenta um esqueleto simples nessa toada de zoar convenções do cinema, criticar a nação, bem como cutucar subliminarmente a Sétima Arte enquanto indústria. O protagonista é um sujeito que provocará a revolução se isso o ajudar na vingança de sucesso improvável. Para garantir a vitória, escolhe aliados com habilidades específicas, cuja pluralidade de conhecimentos/pensamentos é elementar para completar a missão. Uma vez exitosa, a jornada vai ironicamente criar a potência opressora que reivindica há anos o trono do mundo. Aqui o estadunidense médio é tão parodiado quanto os britânicos. Os primeiros são vistos como geralmente marombados, descerebrados e sem uma profunda consciência política. Seus antagonistas são máquinas de matar chefiadas por um monarca com peculiaridades de ficção científica. Nessa saraivada de comentários cortantes, símbolos nacionais são distribuídos para gerar mais curtos-circuitos – vide a esférica bola de futebol assassina e a versão ovalada do futebol americano. Quanto às referências cinematográficas, elas surgem aos montes – a batalha tem toques das sagas O Senhor dos Anéis e Mad Max, além dos mecha Big Ben, do centauro RoboCop e do libertador com motosserras nos braços à lá Ash de Uma Noite Alucinante (1981). O resultado é um choque lisérgico entre as hipocrisias da História e as do Cinema.
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