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Sinopse

Desde muito cedo, as amigas Rita, Nina e Nelita sonharam em ser ricas. Depois de 50 anos jogando na Mega Sena, elas vencem, mas decidem ocultar a sorte dos maridos a fim de aproveitar um pouco o dinheiro sozinhas.

Crítica

O monólogo inicial de Amigas de Sorte é carregado de desgosto com relação à ideia romântica da família enquanto um refúgio de amor. Nina (Arlete Salles), dona de uma cantina tipicamente italiana no bairro do Bixiga, em São Paulo, afirma que cuidar de marido, filhos e netos tende a ser um porre, tarefa inglória, sobretudo quando se está na chamada “melhor idade”. Então, pode-se esperar que a trama das amigas enriquecidas de uma hora para outra, decididas a aproveitar entre elas antes de contar sobre a fortuna adquirida, carregue aquilo da descoberta da essência. Já vimos muitas vezes no cinema essas tramas em que alguém se afasta da rotina cansativa, passa por episódios excitantes, para finalmente voltar ao início e perceber o encanto das coisas que pareciam desgastadas pelo tempo. No entanto, aqui há tantas incongruências e fragilidades de concepção/execução que nem a esse clichê a jornada se presta. O que se tem é um acúmulo de gratuidades e mudanças abruptas somadas ao ponto de gerar um amontoado de situações estereotipadas.

O primeiro problema de Amigas de Sorte é a inconsistência na apresentação das personalidades das protagonistas, especialmente no que diz respeito às suas minúcias. Nina chega a se contradizer quase imediatamente depois dessa manifestada fadiga como matriarca a quem todos recorrem. Na conversa com Nelita (Susana Vieira) e Rita (Rosi Campos), ela diz que gosta da sua vida, invalidando o pretenso desejo de uma folga. Durante todo o longa-metragem, pessoas falam uma coisa e, sem mais aquela, desmentem o que os tornaria singulares com gestos, ações e respostas diferentes. Aliás, na fase de revelação das características básicas das protagonistas, o cineasta Homero Olivetto pula de uma a outra esquematicamente, seguindo uma ordem pré-estabelecida, cuja obediência causa a sensação de “acabei de ver este filme, dentro deste filme”. É preciso suspender bastante a descrença para “comprar” os rumos do roteiro. Maridos alertados pelo roubo do carro é algo difícil de engolir, porque era para o automóvel ficar em São Paulo, não com as três viajantes.

Ainda que abrace abertamente todos os chavões e bordões do esqueleto ao qual abertamente se filia, Amigas de Sorte não demonstra desejo de brincar com elementos, adequá-los à realidade das protagonistas, quiçá de subvertê-los. Homero trabalha no limite da burocracia as diferenças entre as amigas, quando muito martelando aspectos já mostrados. Susana Vieira é a senhora deslocada que, ao contrário das demais, mantém acessa a chama do desejo sexual. Rosi é a solteirona menos disposta a extravagâncias. As duas se movimentam sem tantas variações dentro desses contornos essenciais. Já personagem de Arlete Salles é uma espécie de representante andante dos problemas que acometem o filme como um todo. Numa cena, pechincha centavos, mesmo sendo milionária. Na outra, incita as demais a gastar. Na próxima, volta a barganhar sem necessidade. Nina mostra-se feliz por estar sem marido, filhos e netos, mas mantém-se indisposta a aproveitar sexualmente a estadia no Uruguai. Imediatamente depois, é mais flexível. No fim das contas, retorna ao conservadorismo.

Amigas de Sorte não demonstra a oscilação do comportamento das protagonistas como flutuação normal em decorrência das perspectivas do enriquecimento. É evidente que as inconstâncias são fruto da fragilidade do roteiro, da incapacidade de dispor modulações, seja a favor da construção da “moral da história” ou do humor, aliás, efeito que passa longe de dar as caras. Apesar de ter somente 80 minutos, o filme tem várias cenas à deriva, sendo um exemplo disso o momento em que Nina, Nelita e Rita chegam ao hotel luxuoso na paradisíaca cidade litorânea do Uruguai. A cantada da personagem de Rosi Campos na caixa da lotérica é tão avulsa em meio ao resto que nem é justificável pela revelação que ajuda a encerrar a história com a celebração da amizade. Um componente que sublinha a falta de apuro prevalente por aqui é a inserção publicitária, sempre escancarada, chegando ao cúmulo de alguém carregar uma amostra de óleo a outro país e pedir que o chefe estrangeiro cozinhe com aquilo. Por fim, o sotaque ora carregado, ora abandonado das moradoras do Bixiga, novo indício da displicência diretiva, principalmente com o potencial cômico dos exageros e padrões.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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