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Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

Benito e Nelsão são dois amigos das antigas que seguem uma vida proletária. Sem perspectivas de melhora no horizonte, eles recebem a ligação de Joca, um velho companheiro que está de volta aos ambientes do Recife.

Crítica

Há certos filmes imperfeitos que nos mobilizam e/ou interessam bem mais do que alguns tecnicamente próximos do impecável. Aliás, essa obsessão pela "qualidade" como um atributo indispensável é sintoma de anseios industriais. Ao contrário do que muitos pensam, nem sempre a competência da fotografia, da direção de arte, das atuações e do desempenho dos demais departamentos garante que um longa-metragem seja memorável. Existem obras cuja pulsação passa longe dessas virtudes perseguidas como um ideal estético, mas também comercial. No entanto, estamos diante de produtos de massa e nem sempre o consumidor olha para aquela laranja de não tão boa aparência, mas que às vezes surpreende por conter um suco saboroso. Amigos de Risco está longe de proporcionar uma experiência inesquecível. Os primeiros minutos sugerem que a equipe provavelmente precisou lidar com problemas financeiros e de falta de bagagem. As cenas são escuras, aparentemente não há correção de cor e alguns movimentos de câmera parecem simplesmente existir para que o quadro não fique parado (mas, sem propósito narrativo). Na apresentação de um dos protagonistas, a que acontece num restaurante, os figurantes claramente esperam as deixas para representar suas interações e a captação de som é tão irregular quanto o trabalho da pós-produção. Felizmente, o engessamento é rapidamente é vencido e o que parecia algo de acabamento e condução duvidosas, mostra suas qualidades.

Amigos de Risco foi rodado em 2005, montado e finalizado em 2007. Mas, a sua via crucis até chegar aos cinemas em maio de 2022 é tão estapafúrdia que daria um belo thriller ou, dependendo do ponto de vista, um drama, até mesmo uma sátira para rir dos nosso problemas estruturais. Em 2008, quando estava prestes a debutar na Mostra de São Paulo, o filme teve a sua cópia-zero extraviada pela companhia aérea – o que desencadeou uma batalha judicial. Sem os negativos em 35mm perdidos, sobrou a versão não finalizada do laboratório, o que emperrou o lançamento comercial, pois os produtores não tinham recursos para encomendar outra cópia. Portanto, assistir ao longa em 2022 é um chamado à sensação de nostalgia em virtude da remessa a outro Brasil, diferentes em várias coisas. Por exemplo, para entrar num estabelecimento, os personagens pagam apenas R$ 7 reais cada um (saudade desse tempo). Numa das tomadas, é possível ver alguém navegando na internet – naqueles computadores brancos de mesa que amarelavam com o tempo – e aberta uma página da famosa rede social Orkut. Para os membros mais jovens da plateia, pode soar estranho que os amigos caminhem quadras em busca de um orelhão para chamar uma ambulância. Apenas o endinheirado tem um telefone celular. Enfim, o fato de o filme chegar aos cinemas 17 anos após as filmagens permite esse tipo de relação entre um passado relativamente próximo e um agora em tudo dele distante.

Na trama, Benito (Rodrigo Riszla) e Nelsão (Paulo Dias) são assalariados que recebem a ligação de Joca (Irandhir Santos, no seu primeiro papel nos cinemas), amigo das antigas que retornou ao Recife depois de um tempo exilado no Rio de Janeiro. Joca convida os dois para perambular pela cidade num carro do ano (Monza, atualmente também uma raridade), colocar o papo em dia e relembrar velhos tempos. Amigos de Risco continua apresentando os mesmos problemas de execução, o que tende a tornar a sessão um tanto desafiadora aos excessivamente preocupados com a “qualidade” da fatura técnica. No entanto, as andanças desses sujeitos pela capital do estado do Pernambuco fisgam o nosso interesse, principalmente pelos personagens, bem como pela maneira simples e direta de costurar as relações entre eles. Benito está triste porque acabou de perder a mulher amada; Nelsão está numa pindaíba de dar dó (devendo a um agiota); e Joca chega de fora contando vantagem por ter se dado bem na Cidade Maravilhosa vendendo bugigangas naquelas lojinhas de importados e de R$ 1,99. Os três (e mais o sócio de Joca) são seres errantes pela madrugada da cidade esvaziada, quando muito encontrando outros tipos que se divertem na calada da noite. Se falta refino em quase todos os departamentos, tecnicamente falando, sobra um bem-vindo amadorismo (do verbo amar) e também o frescor que às vezes falta no cinema atual. É interessante ver Joca, de determinado ponto em diante, se transformando simplesmente num corpo desfalecido que é carregado pelos operários. Ele simboliza o fardo das escolhas.

Amigos de Risco tem em seus créditos nomes que despontariam no cinema. Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux são responsáveis pelo still; Juliano Dornelles assina a direção de arte; Marcelo Lordello é assistente de direção; Leo Falcão é um dos produtores; e Irandhir Santos o então iniciante intérprete de Joca, dali para adiante se tornaria um dos nossos atores mais aclamados e respeitados. O cineasta Daniel Bandeira coloca três personagens de passado em comum revelando um ambiente urbano decadente, repleto de ruas vazias (e potencialmente perigosas) e demais figuras não menos errantes. Se, por um lado, há uma evidente precariedade quanto à execução, por outro, pode-se dizer: estamos diante de uma realização que possui alma. Bandeira se esforça para transformar as precariedades em fragmentos de uma linguagem despojada que não está preocupada em parecer adequada aos ditames do bom gosto. Esse filme imperfeito de carreira errática, que quase teve um desfecho trágico, de certa forma alude ao desbunde preconizado pelo chamado Cinema Marginal, época (fim dos anos 1960, começo dos 1970) em que os realizadores defendiam o avacalhamento. Mesmo descolado da iconoclastia do período e lutando contra as adversidades, Daniel Bandeira sustenta o interesse nesse filme cru e vivo por conta da autenticidade da abordagem de um mundo de falidos, fodidos e passados para trás. As virtudes nem sempre estão na maestria. Assim como nem tudo o que reluz é ouro.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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