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Sinopse

Beth fica preocupada quando o filho Josh, de oito anos de idade, começa a conversar com um amigo imaginário chamado Z. Ela procura um psicólogo capaz de ajudá-la, mas todos insistem que esta é uma atitude normal em crianças. Aos poucos, o menino se torna cada vez mais próximo da agressiva figura sobrenatural.

Crítica

É comum os filmes de terror partirem do pressuposto que, quanto mais tensos forem os gestos do cotidiano, mais aterrorizante se tornará a história. Desde a primeira cena, quando o pequeno Joshua (Jett Klyne) brinca com um trenzinho, a cena adquire uma atmosfera ameaçadora, ornada pela trilha sonora sugerindo ataque iminente. Cada porta fechada promete um monstro por trás, cada copo de leite sobre a mesa pode ser movido pelo monstro invisível. Amizade Maldita (2019) acredita na necessidade de ser intenso, insistindo na presença constante do mal. No entanto, alguns efeitos decorrem desta escolha. O teor estridente sem variações pode sustentar o medo do espectador (provável ambição do diretor Brandon Christensen), ou provocar a anestesia pela repetição e seriedade face ao absurdo. Quando tudo se converte em prenúncio do ataque, nada o é: existem olhos brilhantes dentro do armário escuro, e daí? Eles estavam presentes o tempo inteiro, mas até agora não fizeram nada. Um brinquedo infantil repete a letra “Z” (nome da criatura) infinitas vezes, mas que problema isso teria? A entidade já se encontra dentro da casa de qualquer maneira. O teor solene demais cai na armadilha da inconsequência: não há surpresas quando o adversário está presente o tempo inteiro.

O projeto manifesta verdadeira obsessão por Z. Em menos de cinco minutos, o amigo imaginário de Josh já constitui um grande problema aos pais. Em menos de trinta minutos, a criatura terá cometido o mais impensável dos atos. O que resta à narrativa? O diretor atribui a Z todas as características possíveis, e contraditórias: a exemplo da saga Atividade Paranormal (2007 -), a entidade começa invisível e corpórea, depois se apossa de criaturas inocentes como nas premissas de exorcismo, para então adquirir forma e corporeidade. Não há lógica na construção do vilão que, seguindo os clichês desgastados do terror, surge por trás da protagonista durante meros segundos no canto de um cômodo antes de desaparecer. O monstro pode atacar, mas não ataca. Pode matar, mas não o faz. Ele aparentemente persegue sua vítima há tempos (e por que a teria perdido de vista em primeiro lugar?), e quando pode possui-la, foge cidade afora. O que tanto fazem os fantasmas no fundo dos corredores, passando rapidamente pelo reflexo do espelho, assombrando casarões com escadas de madeira? Como são tímidas estas aparições exclusivas aos olhares do espectador! Como são seletivas as intrusões sobrenaturais que excluem pequenos apartamentos urbanos e comunidades pobres! Se estiver com medo de assombrações, refugie-se numa quitinete e estará salvo.

Os lugares-comuns se intensificam ao longo da trama. Logo, a mãe apavorada (Keegan Connor Tracy) preferirá usar uma pequena lanterna ao invés de acender as luzes da casa; procurará nos porões e sótãos; encontrará a figura do sábio/feiticeiro (Stephen McHattie) capaz de lhe explicar o funcionamento das forças do mal; mergulhará na banheira de um cômodo escuro, cercado por velas. “Mas estes são os códigos do terror!”, argumentam muitos criadores para justificarem suas escolhas. Exatamente por isso, talvez fosse importante procurar fronteiras e subversões dentro do imaginário brilhante criado há mais de cinquenta anos, e que precisariam se adequar ao cinema contemporâneo. Jordan Peele, por exemplo, tem buscado ferramentas confrontar a sociedade do século XXI aos preconceitos do século XIX. Já Amizade Maldita se contenta com os sustos de brinquedos infantis, o reencontro improvável com um psicólogo de três décadas atrás (aparentemente, o único existente na cidade) e um material em vídeo conservado até os dias atuais sem razões aparentes para tal. A trama não se esforça em seguir a própria lógica.

A situação se complica devido à crescente de misoginia do roteiro. O filme se esquece rapidamente do filho pequeno, e sobretudo do pai Kevin (Sean Rogerson) para se concentrar no pavor da mãe. Josh está contente com o amigo imaginário, e o marido não se importa. Diante de evidências do ser maligno, Kevin dá de ombros. Já o psicólogo repete à mulher: “Está tudo na sua cabeça” – o que não seria mentira, mas tampouco oferece qualquer ajuda prática a Beth. Ninguém se incomoda com a presença de Z, exceto pela protagonista. Um assassinato é esquecido com facilidade improvável, enquanto as pinturas complexas na parede são interpretadas pelo pai como uma traquinagem do menino. O filme se divide entre a tese de distúrbios psicológicos graves da mãe e a hipótese de que esteja lutando sozinha contra as agressões exteriores, visto que ninguém mais acredita nela. Existe um prazer notável em torturá-la psicologicamente, algo comparável – guardadas as devidas proporções – a O Bebê de Rosemary (1968), porém desprovido do teor crítico de Roman Polanski. Estamos mais próximos do território martirizante de Mãe! (2017), de Darren Aronofsky, onde a diversão consistia em provocar uma figura bondosa até os limites de sua sanidade mental. A narrativa de 2019 combina os preconceitos de histeria feminina, sensibilidade excessiva das mulheres e instinto materno inato, com doses generosas de gaslighting e relação abusiva com o monstro.

A jornada de opressão por parte dos homens (Z constitui um stalker masculino) poderia resultar num olhar socialmente crítico, caso Christensen não estivesse preocupado demais em avançar aos solavancos, ocultando o desfecho de personagens-chave. Quando a tia Jenna (Sara Canning) assume a função de “homem da família”, ela veste uma camisa masculina, algo que beira a paródia ao invés do empoderamento. O cinema do século XXI se acostumou a pedir maior participação feminina em papéis principais. No entanto, isso não significa desenvolver uma enésima mãe frágil, delirando em meio a homens sensatos, sofrendo sucessivas chagas para o prazer do espectador (alguém se lembra da Justine de Sade)? Keegan Connor Tracy extrai o possível da mulher definida pelas figuras masculinas ao redor (mãe, esposa, paciente), despida de objetivos e vontades. Beth é mãe, vítima, mártir e alvo exclusivo da obsessão dos monstros, a exemplo das mocinhas burras e peitudas dos slashers, das garotas virginais das histórias exorcismo, das jovens violentadas dos rape and revenge films. Não tarda até percebermos que o olhar da direção, na verdade, se identifica com o agressor Z, ao invés da vítima.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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