Crítica

O resultado imediato do sucesso de Cães de Aluguel (1992) para Quentin Tarantino foi a oportunidade de vender roteiros com sua assinatura para outros cineastas. O caso de Amor à Queima Roupa foi o primeiro de alguns que viriam (como Assassinos por Natureza, 1994, e Um Drink no Inferno, 1996). Como poderia se imaginar, a visão dos diretores envolvidos em cada um destes roteiros soterra em boa parte a assinatura de Tarantino. Nada mais normal, visto que em Hollywood existe há um bom tempo a supervalorização dos diretores como os legítimos autores do filme (papel que já fora dos produtores nas primeiras décadas da história do cinema). Dito isso, Amor à Queima Roupa é, sem sombra de dúvidas, um filme de Tony Scott. Mas com o charme dos diálogos de Quentin Tarantino. É basicamente isso que salva este longa-metragem executado de forma bagunçada e deselegante pelo diretor responsável por Top Gun (1986).

Na história, o acomodado Clarence (Christian Slater) conhece e se apaixona pela bela garota de programa Alabama (Patrícia Arquette) em meio a três sessões de cinema de filmes de kung fu. Em poucas horas os dois estão totalmente entrelaçados e decidem se casar. Mas existe o problema do cafetão de Alabama, Drexl (Gary Oldman), que não deixará a garota desistir da vida fácil impunemente. Clarence decide ouvir sua consciência – que tem as feições, roupas e maneirismos de Elvis Presley – e arranja um encontro com o ex-chefe de Alabama na esperança de livrá-la e buscar seus pertences. O que acontece é uma sucessão de socos, pontapés e tiros, com Clarence fugindo com a maleta de sua esposa. Ao chegar em casa, os dois descobrem que, no lugar das roupas, a valise portava uma quantidade de cocaína capaz de render meio milhão de dólares. Sabendo disso, o casal vai até Hollywood tentar vender a droga. Mas os reais donos da cocaína estarão em seu encalço, assim como a polícia.

A trama tem todas as características de uma verdadeira história saída da cabeça de Quentin Tarantino: violência, citações a filmes e músicas, personagens desajustados e uma narrativa que surpreende por se desenrolar por caminhos inesperados. É interessante mencionar que o roteiro tinha outra marca registrada, suprimida pelo diretor Tony Scott: a não linearidade. Foi o cineasta que decidiu colocar os acontecimentos em ordem linear, contrariando o roteiro de Tarantino. Outra mudança foi a inclusão de um final feliz, inexistente no script original. A primeira mudança não parece ter estragado o resultado, visto que a história se desenrola muito bem e é surpreendente o suficiente, não carecendo de uma falta de linearidade para entreter o espectador. Já o uso do final feliz parece ter sido uma demanda do estúdio, que percebeu a recepção negativa do desfecho original em exibições teste. De qualquer forma, mesmo dirigido por Tony ScottAmor à Queima Roupa guarda estas marcas do autor do roteiro, sendo possível reconhecer Tarantino no meio da bagunça que é a execução do longa-metragem.

Assim como acontece com Oliver Stone e seu Assassinos por NaturezaTony Scott não encontra um jeito de colocar o texto rápido e inteligente de Tarantino na tela sem se atrapalhar. A narrativa é rápida como um raio, as cenas são tão soltas que, em alguns momentos, chegam a ser confusas, e a falta de uma edição mais bem amarrada transforma Amor à Queima Roupa em uma colcha de retalhos gigante. Parece que não existe um diretor ali para dar uniformidade no conjunto, ou um equilíbrio a tudo. O filme é uma maçaroca de (boas) idéias, com um elenco invejável, mas precariamente utilizado – culpa que pode ser atribuída ao roteiro também, que cria bons personagens, mas não os desenvolve.

Christopher Walken é um excelente exemplo. O ator rouba a cena ao interpretar o perigoso siciliano Vincenzo Coccoti. Era de se esperar que ele retornasse para mais alguma cena, fechando seu ciclo dentro da história. Mas não é o que acontece. Os policiais vividos por Chris Penn e Tom Sizemore, por outro lado, aparecem apenas no terceiro ato, caindo de paraquedas na história, parecendo terem sido incluídos no filme apenas para dar mais periculosidade no conflito final. Um tipo de equívoco que, se foi realizado no roteiro de Tarantino, parece ter sido devidamente consertado nos seus scripts seguintes.

O elenco tem ótimos nomes interpretando pequenos papéis (Dennis Hopper, Brad Pitt, Samuel L. Jackson, Gary Oldman, Val Kilmer) e nomes razoáveis fazendo os protagonistas (Christian Slater e Patrícia Arquette). Slater faz o papel de sua vida em Amor à Queima Roupa, convencendo totalmente como um rapaz incrivelmente perdido na vida, que descobre um grande amor em uma prostituta e perde totalmente o seu norte. Seu desequilíbrio pode ser constatado pelos conselhos nem sempre pacíficos do seu “grilo falante”, Elvis (interpretado com humor por Val Kilmer). Já Patrícia Arquette é utilizada como uma narradora pouco eficaz, mas que não tem problemas em cativar o espectador com seu jeito avoado e alegre.

Com uma boa trilha sonora composta por Hans Zimmer (mas nem sempre utilizada nos momentos certos), personagens desajustados e ótimos diálogos, Amor à Queima Roupa acaba sendo um bom filme. Triste notar que com um diretor menos atrapalhado e com uma fotografia não tão datada (legitimamente anos 90), a produção poderia se transformar facilmente em um grande filme. O seu grande mérito é divertir o espectador com sua violência estilizada, com algumas boas piadas e com suas referências a Hollywood. E, claro, com uma história de amor longe do açúcar que estamos acostumados.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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