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Sinopse

Datong, China, 2001. A linda e jovem Qiao está apaixonada por Bin, um mafioso local. Durante uma briga entre gangues rivais, ela dispara uma arma para proteger seu namorado. Essa prova de amor irá lhe custar cinco anos de prisão. Após a sua libertação, Qiao procura por Bin, e o relacionamento perigoso, cheio de altos e baixos, se inicia novamente.

Crítica

Existe um abismo considerável entre o que o casal protagonista é no começo de Amor até as Cinzas e como o par se encontra no encerramento do filme. Boa parte da obra pregressa do cineasta Jia Zhangke é igualmente empenhada em radiografar as mudanças que a China vem sofrendo nas últimas décadas, com a modernidade colocando em xeque os valores de uma pátria fundada, exatamente, sobre os pilares da tradição. Nesse sentido, o elo entre Qiao (Zhao Tao) e Bin (Liao Fan) é aquilo que permanece, embora bastante modificado frente às cambiantes marés do tempo. No começo dos anos 2000, ambos são jovens, impetuosos e bastante influentes. O homem é líder de uma irmandade com várias atividades ilícitas, organização guiada por códigos antigos. Ela, sua namorada, é respeitada por todos os integrantes, não se restringindo a ser uma espécie de primeira dama decorativa. Gradativamente, essa relação bem estabelecida de poderes se inverte, principalmente com o intuído de mostrar a tenacidade feminina, algo que sempre foi relegado à margem do amplamente visto.

Como em vários de seus outros longas-metragens, o realizador faz do cenário, tanto o físico quanto o social, um componente essencial à atmosfera que emoldura a trama. O desejo de estudar as mutações chinesas passa não apenas pelo salto cronológico que, adiante, reconfigura a posição dos personagens principais, embora deflagre que o âmago não se adulterou. Esse ímpeto também é visto nos diversos instantes, aparentemente corriqueiros, em que a câmera se detém em edificações carcomidas e nas conversas que mencionam a necessidade de refazer estruturas. Há o desenho de um país que apressadamente deixa para trás atividades laborais compreendidas até então como vitais à economia, a fim de se adequar aos ventos do capitalismo que, mesmo camuflado, se encarrega de despersonalizar. Segundo tal lógica, os anseios passam a ser homogeneizados. Um indício mais direto disso é a citação de um alagamento que, em breve, deve acabar com a vila à margem do rio, assim inundando histórias e heranças em virtude da urgência do tal progresso.

Por meio da excepcional interpretação de Zhao Tao, vemos a forma como Qiao se ajusta, não sem angústias lancinantes, às novas realidades. Suas coragem e perspicácia são exaltadas em diversos momentos, contrapostas às fragilidades insuspeitas do homem amado. Figura forte da família chinesa, a mulher, circunscrita à liderança do lar, com as demandas da contemporaneidade passa a assumir publicamente a dianteira das narrativas, bem como faz a protagonista, sem para isso trair a sua natureza. Quando testemunha seu amante sendo espancado pelos jovens metidos a gangsteres – e essa imprudência violenta da juventude é outro sinal da brutalidade de determinada transições –, ela se arrisca ao mostrar o porte de arma que pode lhe aprisionar por um longo período. A ausência de Bin nos anos do cárcere é um sintoma da fraqueza masculina esquadrinhada por Jia Zhangke. O mesmo pode ser visto na cena em quem a nova namorada conta à antiga sobre o rompimento. O ex fica escondido, acovardado nas sombras, enquanto as duas se resolvem às turras.

Para sobreviver, a mulher dá dois golpes seguidos, baseada no machismo vigente na China. Primeiro, tira dinheiro do sujeito aleatoriamente escolhido para ser vítima da presunção de adultério. Segundo, rouba o veículo do mototaxista que lhe assedia sexualmente. No salto temporal que leva a trama a 2017, período caracterizado pelos celulares touch screen, diferentemente dos modelos flip comuns anteriormente, uma nova China se apresenta, com seus trens rápidos e a posição de chefia desempenhada por aquela que realmente demonstra capacidade de adaptar-se a fim de, paradoxalmente, perpetuar certos costumes. Não à toa, quem mais sente isso é o outrora "cabeça", agora limitado física e psicologicamente, auxiliado pela ex-cônjuge que desamparou no passado recente. Jia Zhangke não fala necessariamente de um amor infinito, mas de lealdade, de algo metamorfoseado pelas adversidades, traço evidente na belíssima metáfora contida no plano em que Bin ensaia os primeiros passos em direção a Qiao, reaprendendo a caminhar com o vulcão ativo ao fundo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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