Amor e Restos Humanos
Crítica
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Sinopse
Numa visão pouco otimista das relações amorosas, o cineasta canadense Denys Arcand vai fundo em temas como a obsessão no limite da psicose, solidão e o egoísmo, painel em que a Aids serve como instrumento de redefinição. Conseguiu realizar uma síntese das preocupações e ansiedades da geração dos anos 90. Ambos rondam a cidade em busca do amor ideal, mas só convivem com personagens sombrios, como o jovem yuppie que se aconselha com David, outro jovem indeciso na sexualidade que o persegue, ou ainda a garota lésbica apaixonada por Candy. É um parceiro de David que aparece com a notícia de um exame de HIV positivo.
Crítica
Onde foi parar todo mundo?, surge a pergunta logo na abertura. Na cena, estão lado a lado Bernie e David, dois amigos que já não se conhecem. Ao mesmo tempo em que a roupa escura, a bebida e a postura os tornam parecidos, algo – que ainda não sabemos o que é – os afasta e diferencia. Sentados no balcão da cafeteria, isolados dos demais, rompem o presente com a pergunta que abre o parágrafo. Somente quem aceita a solidão e a falta de intimidade pode tratar a própria condição de maneira tão direta. É a primeira e última vez que isso acontecerá. No mais, o imperativo é agir. Com roteiro de Brad Fraser a partir de uma peça sua, Amor e Restos Humanos, filme do ácido diretor canadense Denys Arcand, não é uma resposta à questão, mas o percurso que levou os seus personagens a ela.
A narrativa traz dois núcleos desenvolvidos de forma desigual. De um lado está o mistério de um serial killer que se ocupa com jovens, enquanto do outro, temos uma rede de relacionamentos problemáticos. Fica evidente o fracasso do plot de ação quando podemos afirmar que a um espectador menos atento a trama poderia muito bem passar despercebida, dado o grau de obscuridade e confusão com que o filme a trata.
Na contramão deste equívoco temos os dramas afetivos, cujo centro narrativo é o ator e ex-apresentador de televisão David (Thomas Gibson). Esbelto e viril, o personagem agora garçom lida com a decadência da carreira de maneira a descobrir a homossexualidade e descontar as frustrações profissionais nas noites da cidade, entre um sexo casual e uma carreira de cocaína. David divide o apartamento com a amargurada crítica literária – “pode escrever sobre algum livro que você goste?” lhe pede o seu editor – e antiga namorada Candy (Ruth Marshall). Assim como ele, ela está indecisa sobre como conseguir o que deseja. Como os últimos relacionamentos não evoluíram, aposta no flerte com a colega de academia Benita (Mia Kirshner).
Não é apenas o apartamento que os une. O núcleo David-Candy é o exemplo perfeito da relação que permeia o filme. Em uma cena sintomática, a jovem quer comentar com o colega sobre o passado que compartilharam; indiferente, ele prefere zapear a televisão e dar respostas evasivas. Enquanto Candy aposta tudo em preencher o seu vazio, David assume o vazio como algo inalterável.
Visto de cima, o cenário de Arcand é como o centro da cidade de Roma, onde nos deparamos com uma conjunção afetiva cheia de destroços, exceto que aqui não há qualquer beleza. Sem exceção, os personagens são grosseiramente egocêntricos e interesseiros. A cidade, que pouco aparece às claras, é rude e agressiva. A noite, por sua vez, não é o espaço para descansar, mas o tempo para desabafar e livrar-se de todos os medos através do sexo. Inseguros e imaturos, todos seguem adiante em um caminho irreversível.
Soturno e pesado, o filme é uma espécie de prólogo de uma geração, de um modo de vida contemporâneo que se tornava realidade a partir dos anos 1980. A busca irrefreável pelo prazer é aqui muito mais grave e perigosa do que em Shame (2011), por exemplo. Os farelos da sociedade burguesa que, na fuga da hipocrisia, se lança em um esporte arriscado, sem parapeito ou qualquer proteção. A AIDS é um fantasma que assombra calado.
Ninguém sabe o que o amor é: se é amor apesar das impurezas ou se aquilo que é impuro é qualquer coisa – vício, perversão, medo – exceto amor. Diante da dúvida, a intuição pode ser uma dádiva ou um monstro.
Ao se permitir desconstruir o amor romântico, Amor e Restos Humanos acaba por se tornar uma aposta muito alta diante do que vemos em tela. Inegavelmente forte e indomável como o desejo de seus personagens, o filme não deixa de ser igualmente confuso, prolixo (defeito que acometerá o diretor também no clássico As Invasões Bárbaras, 2003) e muitas vezes desorientado – como todos nós.
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