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Sinopse

Fernanda e Sueli são apaixonadas e vivem um intenso romance. Crises e pressões sociais as afastam. Sueli acaba nas mãos de um mulherengo, engravida e depois comete suicídio. Fernanda passa a ser suspeita de homicídio.

Crítica

No início, uma miss pula da janela de um edifício residencial, morrendo no pátio diante dos olhares dos apartamentos vizinhos. A morte concreta também possui natureza simbólica: a jovem mulher, cujo corpo se oferecia em sedução aos fotógrafos e espectadores na televisão, agora se oferece aos olhares vizinhos enquanto destruição. Na vida e na morte, Sueli (Wilma Dias) tem sua vida íntima privada invadida pelo interesse público, exposta enquanto espetáculo. Isso ocorre porque a modelo bissexual desenvolve um relacionamento com Fernanda (Monique Lafond), personagem lésbica e moradora do edifício onde ocorre o suicídio. A morte situada especificamente no prédio da ex-esposa (as duas se casam durante a trama, ainda que extraoficialmente) trata de associar as duas na tragédia, sugerindo culpabilidade. Se os suicídios costumam levar à busca popular por um bode expiatório, o teor se acentua no caso da jovem bissexual, em pleno Brasil conservador dos anos 1980. Amor Maldito (1984) constitui um exercício não exatamente de culpa, mas de culpabilização. Na interpretação dos vizinhos e dos juízes – desempenhando papéis muito semelhantes -, a responsabilidade seria necessariamente de Fernanda, por ter “desencaminhado” Sueli, “arrastando-a à perversão sexual”.

O primeiro longa-metragem brasileiro dirigido por uma cineasta negra converte-se rapidamente num drama de tribunal. Adélia Sampaio possui a astúcia de deslocar o foco do julgamento: a ré não está sendo acusada de empurrar a ex-esposa janela abaixo (caso que constituiria um homicídio), e sim por ter se relacionado com a vítima. O objeto de julgado torna-se a homossexualidade, ou “homossexualismo”, como ainda se dizia na época. O caso, inspirado em fatos, funciona enquanto metáfora da liberdade feminina e da autonomia LGBT no Brasil pós-ditadura militar, em processo de reabertura democrática. Não por acaso, os personagens se convertem em peças exemplares: do lado de Sueli se encontra uma dona de casa conservadora e ignorante quanto à pluralidade de orientações sexuais, ao passo que o pai da vítima é ninguém menos que um pastor radical, tendo espancado a filha com a Bíblia e abusado sexualmente da mesma. As agressões do homem seriam toleráveis (ele não conseguiria se controlar, coitado, pelo instinto protetor), mas o amor entre duas mulheres representaria a verdadeira violência. “O homossexualismo, essa coisa que muitos costumam tratar com panos quentes, mas que me perdoam a expressão, considero uma imundície, uma falta de vergonha!”, grita o promotor.

Amor Maldito não aborda seu conflito de modo particularmente sutil. A cineasta trata de representar os adversários de Fernanda de maneira raivosa, intercalando cenas de gritos e humilhações. Estão claros os vilões da trama, assim como a intolerância julgada inapropriada pela cineasta. O viés pedagógico pode ser desnecessário no século XXI, ainda que possivelmente se justifique para a sociedade da época, quando o assunto sequer era verbalizado. As menções recorrentes a Deus e à Bíblia, além do imenso crucifixo disposto sobre a parede, acima da cabeça do juiz, aproximam o preconceito de ontem e o preconceito de hoje – aliás, a associação entre homossexualidade e perversão retorna com força desde 2018, com o atual governo. No entanto, a arte mudou a ponto de encontrar maneiras mais naturalistas de representar o lesbianismo, sem instrumentalizá-lo para finalidades exemplares. Neste projeto de 36 anos atrás, Sueli e Fernanda representam uma vítima e uma mártir, respectivamente. O aspecto de denúncia social faz com que a narrativa se converta em panfleto, em alerta sobre os riscos de uma sociedade preconceituosa. Por isso, os homens malvados são realmente asquerosos, e os tolerantes (o advogado de defesa), na verdade nutrem um desprezo pessoal pela ré.

Quem seria a mais forte, nesta estrutura narrativa? A sociedade que esperneia, evoca Satanás e o inferno, em conjunção com os vizinhos que tentam expulsar Fernanda do prédio; ou a mulher suportando estoicamente os olhares acusadores? Sampaio encontra maneiras curiosas de filmar a resiliência desta mulher: Lafond sustenta o olhar alto, porém plácido (evitando tanto a raiva quanto a piedade). Ela contorce as pernas e retrai os pés sobre a cadeira (uma imagem repetida uma dezena de vezes), e depois se levanta para disparar a frase orgulhosa: “Eu sou uma mulher assumida!”. Não uma lésbica assumida, uma homossexual assumida, e sim uma mulher assumida. As imagens carregam um aspecto igualmente rígido: os enquadramentos fixos valorizam espaços assépticos, de cores frias, além de personagens solitários, que se movimentam pouco. A miss jamais desfruta de uma vida particularmente luxuosa, enquanto Fernanda não ganha aprofundamento em sua vida familiar ou profissional. O amor entre ambas ocorre rapidamente, atropelado por elipses brutas, que saltam do primeiro encontro ao namoro estabelecido, da euforia do casamento à traição e a ruína. Apesar do título, o amor entre as duas mulheres não constitui o elemento central, e sim o julgamento deste sentimento pelos olhares alheios. Por isso, Fernanda e Sueli permanecem um tanto opacas, distanciadas. O filme fornece poucos elementos para que se entenda melhor o carinho, a aproximação, as dúvidas, o sofrimento. Elas são descritas como lésbicas, vítimas, agredidas – o discurso prefere se concentrar na ação.

Mesmo assim, a diretora permite alguns momentos de respiro, importantes ao projeto como um todo. Para cada sequência pesada da montagem (os beijos das mulheres alternados com o cadáver sangrento no chão) existe alguma articulação poética, como o sexo entre as plantas do quintal, em alusão ao sonho, ou ainda ao paraíso. A vilanesca cena do jantar com o pai-pastor de Sueli se acentua pela coragem de retratar o beijo das duas mulheres em close-up, substituindo o teor sugestivo por uma abordagem mais frontal do lesbianismo. Apesar do caráter estático e posado das atuações da mise en scène, contrastando com busca pelo naturalismo do romance, ainda existe a coragem de analisar a sociedade como um todo: a homossexualidade em relação à religião, ao lugar ocupado pela mulher, ao conflito entre gerações, ao medo de retaliações no trabalho. Esta exposição se atém grosso modo à constatação dos fatos (ou seja, a percepção de que a homofobia existe, e se manifesta de modo destruidor). No entanto, funciona como gesto de afirmação da diretora mulher, escancarando um tabu com orgulho. Ao final, não foi Fernanda que matou Sueli com sua homossexualidade, e sim a sociedade, através do preconceito. A conclusão pode não ser das mais psicologicamente complexas, porém funciona enquanto metáfora de repressões passadas e presentes.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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