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Sinopse

Amores Expressos, de Wong Kar-Wai, tem como protagonistas dois policiais e duas mulheres solitárias, envolvidos em duas estórias sobre amor, nas suas mais estranhas e variadas manifestações. A primeira é a do policial 223, que se encontra com uma viciada traficante de heroína, por quem se apaixona e guarda na memória. A segunda, do policial 633, que acaba de ser rejeitado de um romance de cinco anos e começa a ver em uma atendente de fast food uma nova possibilidade de relacionamento.

Crítica

1. 233. 2046*. 663. A relação que cada um de nós mantém com os números é muito distinta. De uma mesma forma se pode definir o cinema de Wong Kar-Wai: singular e particular. Independente de ser uma superstição de difícil explicação ou meramente banal, de nenhum modo invalida a relação estritamente pessoal que se estabelece.

Amores Expressos (Chungking Express, 1994), terceira obra da rica filmografia do diretor tailandês, divide-se em duas histórias que de tão similares servem para reiterar propostas de substituição e continuidade apresentadas durante o longa.

Na parte inicial, He Zhiwu é um policial mais conhecido pela numeração 223 e que vê seu relacionamento chegar ao fim no primeiro dia de abril. A data, somada à personalidade praticamente desconhecida da moça, suscita dúvidas sobre a natureza do fato: o relacionamento havia mesmo acabado ou fora simplesmente uma brincadeira? Sem respostas, Zhiwu (Takeshi Kaneshiro) busca resposta para seu conflito amoroso em um ritual todo particular: compra diariamente, durante um mês, abacaxis enlatados com prazo de validade a expirar no primeiro dia de maio. Se até essa data May, sua ex-namorada, não retornasse, estaria decretado o fim.

Somos apresentados paralelamente a uma traficante que faz questão de não esconder seu poder. Relegando aqui a interessante perspectiva que o filme abre a partir da utilização de uma figura feminina verdadeiramente atuante - e aí vale lembrar, por exemplo, Chan-Wook Park e sua Senhora Vingança (Sympathy for Lady Vengeance, 2005) - no sempre polarizado cinema asiático, a história se debruça sobre uma espera agonizante. Por um lado temos outra vez uma mulher misteriosa que sai às ruas para liquidar seus inimigos vestida com capa de chuva e óculos escuros, porque nunca se sabe, alega, quando irá chover ou fazer sol; ao mesmo tempo, acompanhamos a tortuosa contagem regressiva do policial que entre uma lata de abacaxi e outra sai para correr, pois o exercício, explica, faz com que o corpo perca líquidos, sobrando muito pouco para as lágrimas. Nada é sem propósitos em Kar-Wai e a espera que se estabelece nessa primeira seqüência é traço marcante da cinematografia do diretor. Muitas vezes seus personagens se confundem com o próprio tempo.

O primeiro de maio toca o calendário e May, que nunca existiu para o espectador, não aparece. É chegado o momento, em uma espécie de penitência e de superação cômica do luto, de suportar todas as trinta latas de abacaxi comendo-as de uma só vez. O acaso, no entanto, reveste a produção do diretor e a dor de estômago do jovem policial o encaminha para um bar na esperança de diminuir o mal-estar junto à companhia do álcool. Será lá, portanto, o ponto de encontro de dois personagens solitários, tão distantes quanto distintos.

Na segunda parte, um novo policial, desta vez chamado 663 (Tony Leung, presente em praticamente toda a filmografia do diretor), percebe que fora abandonado pela namorada, uma aeromoça. Com o costume de comprar comida sempre no mesmo local, conhece Faye (Faye Wong) a nova funcionária do estabelecimento. Excêntrica, dona de energia e vitalidade impactantes, é um sopro de vida em meio aos taciturnos indivíduos de Hong Kong. Serão suas ações que a partir de agora dominarão grande parte da narrativa, principalmente por havermos conhecido bastante do mundo de 663 – o mundo da perda – na seqüência anterior. Essa garota, sabendo da separação do policial, resolve entrar em sua casa afim de 'reformá-la', termo que ela mesmo emprega. Assim, em metáforas singelas de substituição, limpeza, renovação de um aquário e de uma cama arrumada é que Kar-Wai propõe seu diálogo com o espectador.

Em uma oportunidade na Universidade da Califórnia, a famosa UCLA, Quentin Tarantino, o aclamado diretor de Pulp Fiction e Kill Bill, teria confessado ter se emocionado ao assistir a Amores Expressos. Não fora, conta, uma emoção tradicional, motivada pela tristeza da história ou pela perda de um personagem querido, mas sim pela genuína sensação de verdade que se estabeleceu entre ele e o filme.

Essa sensação de verdade pode ser traduzida por uma relação de intimidade. Wong Kar-Wai não trata de uma ação terrorista em Berlim ou de um assassinato presidencial em Washington; seus dramas não são o mundo, mas significam um mundo. São vidas simples e acontecimentos triviais que cedo ou tarde, ainda que muito similares ou muito diferentes, devem passar a qualquer um de nós. Tal imersão é proporcionada, primeiramente, pela temática completamente acessível, depois pelas referências majoritariamente ocidentais – seja por uma canção como “California Dreamin’”, pela lanchonete fast food ou mesmo pela linguagem próxima ao videoclipe – associadas diretamente à delicadeza oriental das metáforas: a chuva é água; é lágrima; é dor. Assim, o prazo de validade das latas evidenciam, por um lado, a transitoriedade dos sentimentos e, por outro, simbolizam a caducidade da memória.

Uma frase marcará o decorrer do filme: "Quando estamos mais íntimos de alguém, estamos a 0,01 cm de proximidade". Ela é mais que sintomática. Descreve, principalmente, a essência fílmica do diretor. A incomunicabilidade, a aproximação e o isolamento; o fim e o recomeço. Kar-Wai não aposta nas afirmações ou nas certezas. Prefere a dúvida à convicção, e busca extrair do incerto a máxima beleza possível.

Ao final da primeira parte, o policial 223 e a traficante passam a noite juntos. Enquanto ela dorme, ele come e assiste à televisão. Fixando seus olhos incrédulos no desengonçado corpo que se encontra em sua cama, ele diz não acreditar que dormir possa ser uma ação tão leve e tranqüila. Por alguns momentos a companhia distraiu a solidão, mas lhes restará mais que 0,01 cm. a enfrentar.

*"2046 - Segredos do Amor" (2046, 2004), de Wong Kar-Wai.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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Willian Silveira
9
Chico Fireman
9
MÉDIA
4.5

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