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Sinopse

Stela, jovem atriz brasileira, decide trabalhar a partir de cartas trocadas entre artistas plásticas latino-americanas nos anos 1970 e 1980. Ela viaja ao Chile para entender como viviam essas mulheres em tempos de ditadura.

Crítica

Em Ana. Sem Título, a ficção é tratada como um dispositivo documental. No mais novo filme da cineasta Lúcia Murat, Stela (Stella Rabello) interpreta a atriz obcecada, intimada pela existência de uma figura recorrente na troca de cartas entre artistas latino-americanas vítimas de violências estatais. Estas se irmanam na luta contra uma concepção patriarcal que privilegia a existência masculina. Ana aparece nas missivas correspondidas enquanto confidências afetivo-políticas por gente separada geograficamente, mas aliada pelo desejo de resistir. E Lúcia, que no excepcional e paradigmático Que Bom Te ver Viva (1989), já havia lançado mão de uma personagem inventada para sintetizar as vítimas mulheres da ditadura civil-militar que governou o país por 21 intermináveis anos, aqui novamente zomba das fronteiras pretensamente incumbidas de separar o fabulado do acontecido. Na superfície, essa cartografia – e talvez não haja palavra melhor para definir o que a protagonista faz sob a égide da realizadora – visa resgatar a integridade de alguéns que sofreram brutalidades inomináveis.

Há muitos filmes dentro de Ana. Sem Título. E eles dialogam com fluidez. À medida que Stela vai descobrindo coisas a respeito de Ana, seja no evocativo cenário cubano ou mesmo no mais plácido horizonte argentino, revela pontos de conexão com o objeto de seu desejo de saber. As correlações as aproximam e criam o movimento capaz de tragar Lúcia a uma espécie de redemoinho de narrativas ao qual é impossível escapar. Portanto, existe uma reconhecível vontade de pintar um tipo de painel amplo do que é ser mulher nessa América Latina sensível aos desmandos e ao obscurantismo que nunca morre, pois apenas adormece em períodos de durações diferentes. Ana ganha contornos, é vista em fotografias e supostos excertos de pequenos filmes que rubricam seu ímpeto de resistência transbordando de uma iconoclastia venerável. Porém, esse corpo é de Roberta Estrela D’Alva, atuante em diversas esferas artísticas. Seria ela a fantasmagoria da Ana que não existe? Ou talvez uma representação que escancararia o palíndromo como um símbolo, um grande totem?

Lúcia Murat acrescenta camadas à narrativa demarcada por jogo cênico que mistura fatos e criação. Ela própria se coloca na trama, deixando-se ser inquirida, refletindo acerca da busca pelos fragmentos da feminilidade latina em tempos de repressão, inclusive cedendo-se como peça ao inspirador quebra-cabeças. Ana. Sem Título entrevista mais tradicionalmente testemunhas argentinas, chilenas, cubanas e mexicanas para entender um pouco as similaridades e as particularidades de ser mulher em anos duros. Em determinado momento do longa, a jovem encarregada da captação do som menciona como foi angustiante ser interrogada no aeroporto por quatro homens, tão e somente por ser negra. Ana. Sem Título costura experiências heterogêneas, não esclarecendo no decurso quais são verdadeiras e as que eventualmente foram fabricadas de acordo com uma aspiração previamente organizada. Há bons indícios aos que estiverem excessivamente atrás de respostas, mas estas virão apenas no encerramento, quando o método é escancarado e as motivações idem.

Lá no comecinho de Ana. Sem Título, Stela fala da capacidade da ficção de, às vezes, conter mais verdade que a realidade. Sem entrar em elucubrações filosóficas a respeito da genuinidade, Lúcia Murat faz um filme avesso às definições que o limitem, empenhado em elogiar a luta das que mais sofrem em períodos nefastos. De modo equivalente, é uma ode às artistas, daquelas que por meio da criação remaram/remam contra marés de regimes opressores às que fizeram/fazem dos próprios corpos um manifesto de resistência. Para isso, utiliza de forma complementar o modus singular de duas mulheres que individualmente buscam soluções e práticas humanamente convergentes. Stella Rabello vive a curiosa, a movida por remontar à trajetória que alinhava uma série de inquietações a instigando. Roberta Estrela D’Alva encarna a essencialmente ativa, a incendiada por uma inconformidade à qual não negar por querer viver plenamente. Mais do que confundir invenção e fato, a diretora convoca os dois a uma dança engenhosamente coreografada. E o encerramento exalta a potência da arte como forma de subverter as tantas lógicas impregnadas, de oferecer um horizonte.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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