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Crítica


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Sinopse

Uma reflexão profunda sobre a vida e a obra de Andrei Tarkovsky, um dos maiores artistas da história do cinema.

Crítica

Não são raros os cineastas que fazem documentários sobre seus pais. Alguns são, basicamente, acertos de contas; outros ressaltam a saudade, a falta sentida das figuras maternas/paternas; há também os que tomam certa distância desses objetos de estudo para compreendê-los de modos diferentes. Dentro do filão, existe uma leva também considerável sobre pais cineastas – o que pressupõe imediatamente uma herança vocacional. No Brasil, por exemplo, Marina Person dirigiu um documentário sobre seu pai, o grande realizador Luiz Sérgio Person (Person, 2007). Já Eryk Rocha homenageou seu genitor brilhante, Glauber Rocha, em Rocha que Voa (2002) e Cinema Novo (2016). Um dos principais destaques do 3º Russian Film Festival, Andrei Tarkovsky. O Cinema como Oração é dirigido por Andrey A. Tarkovsky e tem como assunto o pai dele, o gênio do cinema soviético Andrei Tarkovsky. E o primeiro aspecto que chama a atenção na construção narrativa desse longa-metragem é a distância que o filho Andrey preserva do pai Andrei. Não há qualquer citação direta sobre o parentesco deles. O cineasta não se coloca em cena, tampouco sublinha a sua subjetividade ao examinar o pai amplamente venerado no mundo do cinema. Andrey mantém a pessoalidade nas entrelinhas, como ao deixar implícita a herança artística transmitida por gerações, começando no avô poeta que inspirou o pai cineasta.

Depois de ponderada essa sintomática distância que o realizador-filho mantém do protagonista-pai, é aconselhável perceber como é revelado esse protagonista que parece uma fonte inesgotável de reflexões sobre arte, religiosidade e a experiência humana no planeta. Andrey A. Tarkovsky evita construir o roteiro dessa bela homenagem como se estivesse montando uma matéria jornalística. O que isso quer dizer? Que ele não está interessado em expor a vida e a obra de seu pai por meio de um caminho repleto de informações. Desse modo, não temos algo do tipo “Tarkovsky nasceu no dia tal, foi assim na infância, passou por este ou aquele problema, chegou assim ou assado a ser cineasta, etc”. Os dados biográficos do cineasta russo são diluídos num diálogo formal com a obra a ser celebrada. Andrei Tarkovsky. O Cinema como Oração explora Andrei Tarkovsky correlacionando experiências infantis e as particularidades contidas em filmes como A Infância de Ivan (1962) e O Espelho (1975). E esse é apenas o exemplo mais claramente perceptível. Podemos notar o quanto a infância foi crucial à dimensão lírica do cinema de Tarkovsky. Isso, sem a necessidade de alguém explicando os elementos encadeados pela montagem de Michal Leszczylowski e Andrey A. Tarkovsky. O filho evita trair a predileção do pai por um cinema menos determinista, propenso aos mistérios e ao insondável.

Andrei Tarkovsky. O Cinema como Oração é uma bem estruturada arqueologia de sons, imagens e sentenças. Tudo é organizado de forma clara, mas sem banalizar os assuntos. Andrei Tarkovsky é visto divagando sobre a necessidade de uma espiritualidade para validar a arte, declarando o amor pela casa bucólica de campo, expressando melancolia e desânimo diante da incompreensão das autoridades cinematográficas soviéticas e ponderando sobre elementos pessoais de seu entendimento sócio-político. Enquanto isso, o filho utiliza a imagem não como um componente de simples ilustração, mas para tentar traduzir visualmente a natureza poética e transcendente do cinema que o pai defende no material de arquivo. Como estamos falando de uma protagonista que deixou uma obra de valor incalculável, o documentário também resgata cenas de suas produções seminais, tais como Stalker (1979), Andrei Rublev (1966) e Nostalgia (1983), a fim de revelar do que era feita essa singularidade do cinema de Tarkovsky. O resultado é concluir que esses filmes de paisagens tão rigorosas e belas eram motivados por uma concepção muito particular e densa da arte, especialmente do cinema. O gênio Andrei Tarkovsky não acreditava que as imagens devessem ser destrinchadas/decifradas, pois isso as esgotaria facilmente. O filme encara essas formulações do russo como epifanias de um mestre sensível.

Andrey A. Tarkovsky observa seu pai com reverência. E o âmbito pessoal contamina o culto ao artista. No fim das contas, Andrei Tarkovsky. O Cinema como Oração pode ser definido desta forma: é um documentário propenso às adições e multiplicações, não às subtrações e divisões. Isso, porque, em vez de separar o homem da sua obra, de observar o artista brilhante de um lado e o cidadão crítico/pensante do outro, o realizador deliberadamente esfumaça as fronteiras. O artista e o cidadão/pai/marido são, assim, encarados como entidades indissociáveis se retroalimentando. Se um dos principais objetivos dos documentários biográficos é lançar luz sobre os protagonistas, fornecendo ao espectador acesso privilegiado a ângulos e entendimentos antes relativamente incógnitos, pode-se dizer que estamos diante de algo bem-sucedido. Felizmente, nele o filho prescinde das informações de mero contexto, se desprendendo dos modelos mais tradicionais que envolvem cronologias bem definidas, teses a serem simplesmente assimiladas e pegadas mais explicativas. Entre altos e baixos, é como se Andrey A. Tarkovsky nos fornecesse algumas ferramentas importantes para conhecermos melhor seu pai, quiçá como ele próprio conhecia. Nesse gesto bonito de compartilhamento, o filho não assume a postura de personagem, evitando fazer um filme sobre existir à sombra do pai genial

Filme assistido durante o 3º Russian Film Festival, em julho de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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