Sinopse
Ao conhecer Raul, Ângela imagina que encontrou outro espírito livre. Eles largam tudo e decidem começar uma nova vida à beira-mar. No entanto, o declínio gradativo da relação gera um dos mais famosos assassinatos do Brasil.
Crítica
“Todo mundo deveria experimentar essa sensação ao menos uma vez na vida, a de enfrentar algo maior do que você”. Ao fazer tal declaração, Raul Fernando do Amaral ‘Doca’ Street estava se referindo ao momento em que, durante um safári na África, abateu um elefante após esse tentar atacá-lo. No entanto, é também a frase que resume com precisão o drama por trás de Angela, segundo longa-metragem de Hugo Prata (Elis, 2016). Eis, portanto, um filme-tese, que a todo instante se anuncia premonitório diante o episódio traumático que tem em mãos, como se todos estivessem cientes do desfecho que aguarda por estes em cena. Não há construção narrativa ou mesmo tecido ficcional que encaminhe os acontecimentos a um clímax elaborado: é certo para onde se dirigem, um acordo que se julgava tácito tanto com o público como entre os personagens. Porém, uma vez que abre mão do mistério, também deixa de lado qualquer desenvolvimento a respeito dos eventos explorados: são meras peças de um quebra-cabeça maior, passos a serem dados rumo a uma única direção, sem suspense ou dúvida. E quando aquilo pelo qual todos aguardam, enfim, ocorre, é mais o alívio de uma jornada que chega ao fim do que a conclusão de uma experiência de angústia e transformação que se percebe, gerando sentimento diametralmente oposto daquele pelo qual se ansiava.
Angela Maria Fernandes Diniz era uma das socialites mais badaladas do Brasil durante os anos 1970 – equivalente aos dias de hoje como uma influencer requisitada. Seu nome vivia nas páginas dos jornais, seja por ter assumido o assassinato de um caseiro que supostamente teria tentado estuprá-la (descobriu-se, depois, que o crime havia sido cometido pelo amante dela), por ter pedido o desquite do marido de uma década (numa época em que a separação matrimonial não era permitida por lei no país), por ter perdido a guarda dos três filhos e levado um deles, a menina, sem autorização judicial (o que configurou como sequestro) consigo, ou por ter sido pega portando algumas gramas de maconha, o que bastou para ser vista como viciada em drogas por uma sociedade careta e conservadora. Nada – ou muito pouco – disso é visto no filme de Prata. A mulher que ganha o rosto de Ísis Valverde (sempre pronta para uma discussão, de comportamento feroz e impositivo, chegando a afirmar que “é preciso ser uma onça para reconhecer outra”) é desde o primeiro minuto desenhada como uma injustiçada, uma figura incompreendida, o velho chavão da “mulher à frente do seu tempo”. Falta ao filme coragem para lhe dar a conotação que a verdadeira sempre assumiu com orgulho. Angela Diniz teria vergonha (ou, no mínimo, acharia graça) dessa Angela.
Sem se prender a ninguém uma vez que estava novamente solteira, acaba caindo nas graças de Doca Street, um playboy acostumado a uma vida de luxos, mesmo que esses, na maioria dos casos, tivessem que ser providenciados por suas companhias. Na pele de um envelhecido Gabriel Braga Nunes – que tem vinte anos a mais do que sua contraparte fictícia, além de sustentar uma expressão marcada no rosto que raras vezes ousa algum tipo de maleabilidade – Street se apresenta com ares de vilania assim que entra em cena. Sustentando frases inacabadas e meias palavras, suas intenções diante da moça de beleza irrefutável não são difusas: não há dúvidas que acabarão na cama – o que acontece logo em seguida, e por vezes diversas ao longo da hora e meia seguinte, com uma insistência que beira o pornográfico e gratuito – assim como também pouco se tenta dissimular a respeito de uma união que tem tudo para acabar mal. No começo, ambos estão envolvidos com outras pessoas, mas isso não impede de se encontrarem às escondidas. Porém, por mais que seja segredo, ataques de ciúmes (por parte dele) já se fazem presentes. O envolvimento de um com o outro ficará cada vez mais sério, e em questão de semanas estarão morando juntos em uma casa à beira mar. Assim como também será crescente as demonstrações de violência dele contra ela.
Nesse lar que tem tudo para assumir conotações idílicas, uma outra figura ganha corpo: a caseira interpretada por Alice Carvalho (Segunda Chamada, 2019). A jovem de olhos firmes e posição dura é a resistência que sua nova patroa tanto alega possuir, mas falha em manter. Entre as duas irá se estabelecer uma conexão forte, que ameaça ser explorada em um paralelo interessante, mas tal opção não chega a ser sustentada pelo roteiro com a firmeza esperada. Assim, o texto escrito por Duda de Almeida (Lov3, 2022) resigna-se a um vai-e-vem de sexo e agressões, como se a atração entre Angela e Doca se resumisse à cama ou a ambientes claustrofóbicos, entre festas e jantares, ou escapismos naturais, como mergulhos na praia ou tomadas aéreas do litoral. Nem mesmo o sentimento de pertencimento e de necessidade que ambos desfrutam chega a ser aprofundado, mantendo-se apenas na superfície, como uma mistura simples de carência (dela) e necessidade financeira (dele). A edição preguiçosa, a trilha sonora carregada e a fotografia televisiva, que investe em um excesso de enquadramentos fechados em contrapartida a um irrelevante emprego de drones, terminam por eliminar quaisquer outras possibilidades de um desfecho minimamente curioso.
Quando convidada para o papel de Angela Diniz, Ísis Valverde foi em suas redes sociais deixar clara sua satisfação em ter a oportunidade de discutir o tema da violência contra a mulher. O tema é, de fato, urgente, e merece ser encarado de frente. Porém, não através de uma obra didática, quase panfletária, preocupada apenas em empenhar frases de efeito e provocações fáceis através de cartelas repletas de mensagens óbvias ao final. Valverde faz o que pode diante de um tipo que nunca chega a ganhar a dimensão e a complexidade merecida, enquanto Gabriel se mostra confortável em seu percurso de antagonista. Está, no entanto, nas costas de Hugo Prata a responsabilidade por esse conjunto se mostrar tão opaco, incapaz de se livrar das amarras dos fatos e adaptá-lo com a ambição que apenas a fantasia criativa poderia proporcionar. Angela tem tudo o que se poderia esperar, menos o fator surpresa, servindo para catequisar aos já convertidos, sem demonstrar inclinação alguma em ampliar o debate aos não iniciados. Oportunidade desperdiçada, portanto.
Filme visto durante o 51º Festival de Cinema de Gramado, em agosto de 2023
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