Crítica
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Crítica
Tudo o que vive, morre, e torna-se algo diferente. Em pequena escala, isso significa nascer, morrer e se decompor para fazer parte da vegetação, do alimento de outros seres vivos e das propriedades do solo. Numa visão mais abrangente, espécies surgem, evoluem e desaparecem, seja por extinção ou porque se decompõem em inúmeras outras novas formas de vida. Mesmo a geografia passa por essas mutações; através dos milênios, montanhas se levantam e são trazidas abaixo outra vez pela ação tectônica, a erosão e demais fenômenos naturais. Por um lado, é um processo triste sob a perspectiva do ser humano, pois nosso recorte é limitado a uma parcela ínfima de tempo dentro desse arco de eventos. Por outro, trata-se de um mecanismo que funciona com elegância e que obtém resultados de fascinante improbabilidade. E esse é o sentimento agridoce evocado por Aniquilação ao confrontar beleza e morte sem medo de que isso leve sua narrativa a se tornar algo diferente.
Como em um sonho, Lena (Natalie Portman) não lembra de como foi parar na sala de interrogatório onde a encontramos pela primeira vez. Seu marido, Kane (Oscar Isaac), é a única pessoa a ter saído do Brilho, um fenômeno ainda sem explicação que surgiu a partir da queda de um meteoro. Denominada Área X, a base militar responsável por desvendar o evento manda a bióloga e um grupo de outras quatro mulheres (uma delas corrige: “mulheres não, cientistas!”) para dentro do Brilho, delimitado por um campo translúcido em expansão que ameaça engolir aos poucos o mundo inteiro. Lá dentro há um lapso de tempo: ninguém na comitiva lembra dos primeiros dias da incursão. Novamente, como num sonho – ou um pesadelo.
O cineasta Alex Garland navega entre os dois tons oníricos. Há o estranhamento de um sonho; ao invés do espectador, são as cientistas que se encontram in media res (recurso narrativo que joga o público já no meio da ação), e o mistério que vieram desvendar se torna ainda mais complexo quando encontram flores de espécies diferentes nascendo na mesma planta. O pesadelo entra quando a beleza irreal da visão cede lugar à ameaça de um crocodilo, que combina a forma reptiliana com uma pele branca e dentes de tubarão. Esse contraste entre o belo e o tenebroso, o fascinante e o mórbido, é o meio pelo qual Garland nos transporta para a sua reflexão; o corpo de um militar morto é, também, uma obra singular da natureza, e que remete à concepções vistas em Enigma do Outro Mundo (1982), que volta à mente no momento em que uma das cientistas, paranoica, amarra as outras a cadeiras enfileiradas para tentar descobrir quais delas ainda são elas mesmas – instante no qual voltamos ao tom perturbador quando a sequência insere um novo e criativo “personagem”, se convertendo numa cena que, sozinha, assusta mais do que a maior parte dos filmes de horror por aí.
A própria atmosfera do Brilho possui essas contradições; o sol entra por meio da vegetação lançando flares de arco-íris (apropriados à explicação que as cientistas descobrem sobre o fenômeno), mas o que essa luz colorida ilumina são cenários e ocorrências desconfortáveis: plantas que crescem em forma de pessoas, um par de cervos que mimetizam precisamente os movimentos um do outro. Mesmo o campo translúcido que demarca as fronteiras do Brilho é concebido como uma enorme bolha de sabão, ainda que o evento se comporte muito mais como um câncer. E a comparação não é gratuita, já que ela se aplica também àqueles do lado de fora. Pois, o que a humanidade é hoje para a Terra não está distante do que podemos dizer de um tumor maligno. E a nossa incapacidade de preservar o planeta talvez denuncie que estamos programados para a autodestruição. A Doutora Ventress (vivida por Jennifer Jason Leigh, seu nome tem peso simbólico para o próprio arco, “ventre”) inquire Lena sobre essa questão, e afirma que a autossabotagem é exercida por todos nós de forma subconsciente. Não por acaso, o mesmo lugar de onde vem os sonhos e pesadelos que ditam o tom do projeto.
Ao narrar um evento fantasioso e específico desse modo, Aniquilação (que se baseia no livro de Jeff VanderMeer) faz o que boas ficções científicas tradicionalmente devem fazer com o espectador: criar uma reflexão. E é válido que aqui questionemos: como espécie, nós vivemos em estado de onirismo? Afinal, não temos absoluta certeza de onde viemos e qual o nosso propósito aqui, e apesar de seguirem um conjunto de regras que aprendemos a determinar, os fenômenos que nos cercam não são menos estranhos, belos e ameaçadores por causa disso. Também habitamos apenas o recorte de uma narrativa maior, e embora tenhamos uma ideia, não podemos confirmar exatamente em que direção ela vai. Mas talvez o aqui e agora, o presente, é o que realmente importa. Alex Garland não seria o primeiro a afirmar que a perfeição é um momento e não um estado que pode ser alcançado, e se pensado assim, Aniquilação enaltece a beleza melancólica da existência de vida, resultado de uma série de fatores improváveis e fadada à extinção, como instantes de perfeição na linha do tempo do universo.
O que nos leva ao desfecho, que por fim sintetiza essa reflexão – e recomendo que leia essa última parte apenas se já tiver assistido ao filme, pois há spoilers. A forma de vida alienígena que habita o epicentro do Brilho causa mutações a nível genético e atômico em tudo abarcado por sua atmosfera, refratando as estruturas de toda a matéria aleatoriamente, criando bizarrices como os animais e plantas que o grupo encontra no caminho. Assim, o extraterrestre acelera absurdamente as variáveis dos fatores que possibilitam o surgimento da Vida e a evolução dessa. É como se o alien fosse obcecado por obter esses instantes de perfeição que o universo leva tantos milhões de anos para conseguir – perceba as formas que cercam seu covil, árvores de diamante, um material de carbono cuja composição estrutural é descrita como “perfeita”.
Este Ser, então, é um reflexo do que a nossa espécie poderia se tornar? É isso o que simboliza a sequência dentro do farol? Como espécie, seu comportamento é expansivo assim como o nosso, mata, muda e instaura novos costumes nos lugares que anexa às suas fronteiras – e por isso a comparação com um câncer serve tão bem a ambos os lados; mas como indivíduo, também possui falhas similares, é aficionado com a ideia de alcançar a perfeição e controlar o universo a sua volta. Suas capacidades demonstram que evoluiu para conseguir realizar esses intuitos, pois se recusa a admitir-se como um recorte no tempo, quer ser infinito – o que explica também a tatuagem em forma de um oito deitado que surge no braço de Lena mais tarde. Desse modo, a criatura não seria uma mimese do ser humano, como se poderia entender a princípio, mas sim nós é que o somos dela. Mas é este o nosso futuro? Romper o ciclo de “tudo aquilo que vive e morre” (palavras de Lena) evoluindo para algo que toma as rédeas da natureza e, indiscriminadamente, muta tudo ao seu redor? Que curva a singularidade poética de nascer, viver e morrer à própria vontade?
Se for o caso, talvez exista mais dignidade em viver no recorte. Como propõe Aniquilação, esse sonho distante confeccionado por Garland, tão apropriadamente inspirado na estrutura de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), mas, em termos de tom e linguagem, mais próximo de um Solaris (1972) ou Stalker (1979) – obras que o precederam no estilo e na temática. E que agora recebem no seu panteão outro título à altura.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Yuri Correa | 10 |
Mariani Batista | 9 |
Marcelo Müller | 9 |
Wallace Andrioli | 7 |
Adriana Androvandi | 7 |
Bianca Zasso | 7 |
Bianca Zasso | 5 |
MÉDIA | 7.7 |
Você escreve muito bem!