Crítica
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Sinopse
María Ana vai diariamente até uma empresa que revive memórias para reencontrar o amor de sua vida. No entanto, uma anormalidade faz com que ela possa perder seu passado tão estimado.
Crítica
Um dos filmes mais bonitos e inventivos dos anos 2000, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) pediu licença à ficção científica para realocar seus códigos dentro de uma lógica predominantemente romântica. Nele, a grande sacada era que todos poderiam ter direito a simplesmente apagar lembranças dolorosas, como as de um relacionamento cujo término ainda provocasse sofrimento. No fim das contas, o protagonista de Jim Carrey percebeu que mesmo memórias dilacerantes são indispensáveis para forjar quem somos, e que não é saudável se esquecer de momentos – ainda que isso diminua a dor da perda. No boliviano Anomalia essa equação é praticamente invertida. A empresa existente não oferece um serviço de eliminação das reminiscências, pelo contrário, pois possibilita ao usuário voltar aos instantes que aconteceram. A protagonista Maria Ana (Beatriz Spelzini) entra diariamente na mesma cabine para se recordar do relacionamento com o marido que morreu por conta de uma doença. O cineasta Sergio Vargas Paz torna as viagens mentais ao passado um bálsamo à existência da mulher amargurada na realidade. Aliás, há uma distância considerável entre o prazer que ela revigora na poltrona do reservado 23 da corporação e o cotidiano praticamente sedativo que tem na realidade. Suas interações genuínas são protocolares e melancólicas.
Visualmente, Anomalia faz uso de uma estética comumente utilizada para construir a ideia de futuro não muito distante. Boa parte dos cenários são assépticos, com a predominância de cores primárias e um verniz de uniformização. Na empresa, por exemplo, tudo é muito branco e despersonalizado. Nos demais lugares, sobretudo nas dramatizações das lembranças de Maria Ana, frequentemente há uma luz externa estourada que busca dar às circunstâncias uma aura de sonho/irrealidade. Outra constância são os aparelhos eletrônicos translúcidos e a tecnologia praticamente onipresente – mesmo para fazer pedidos numa suposta espelunca ou entreter-se enquanto se corta o cabelo. É bastante consistente o desenho desse contexto, méritos da direção de arte e dos eficientes efeitos digitais. No entanto, não é apenas nos adereços e nas inserções que esse pouco admirável mundo novo reluz na telona, mas também em virtude de certos comportamentos bastante sintomáticos. Toda vez que chega para ter suas sessões diárias de conexão com um passado remoto, a senhora é recebida por uma funcionária que mantém um sorriso no rosto e praticamente não sai do protocolo de atendimento. Somente em um par de momentos essa robotização celebrada como sinônimo de eficiência é quebrada por algo excepcional. Esse é o indício das afetações humanas desse amanhã quase imediato a nós.
Mas, o longa-metragem boliviano tem um coadjuvante que ameaça perigosamente o protagonismo de Maria Ana. Nikola (Juan Pablo Barragán) é o engenheiro fascinado pela energia gerada nos cérebros durante os tais procedimentos de rememoração. Ele é visto como um daqueles típicos cientistas obcecados que pretendem ir às últimas consequências para desafiar os padrões e expandir as fronteiras do conhecimento. A despeito da adesão proposital a um modelo arquetípico – jovem antissocial e sofredor que demonstra tiques nervosos ao se expressar –, esse personagem ensaia ser um espelho da artista plástica que procura no passado o rosto do marido justamente porque, assim como o sujeito, está terminantemente obcecada por algo. Enquanto ela não consegue ter uma vida plena de cores e sabores no presente, por isso apelando regularmente ao regresso, ele pretende provar a tese de que é possível viajar física e mentalmente no tempo. No entanto, o roteiro Sergio Vargas Paz e Jorge Rollano não desenvolve as camadas e minúcias dessa óbvia identificação. No fim das contas, o fato de ambos terem uma compulsão determinante nem chega a estabelecer um elo considerável. Basicamente, ela precisa dele para saber o que aconteceu em certo ponto da trama e ele precisa dela por conta da sua possível capacidade de transitar entre as ondas do espaço-tempo, uma aptidão certamente incomum.
Anomalia é um filme cujos valores não estão na originalidade ou mesmo na forma de tratar os assuntos levantados. Já vimos circunstâncias parecidas em vários outros exemplares de pegadas semelhantes. Os personagens tampouco são atípicos às ficções científicas que flertam com conceitos filosóficos-existencialistas – e essa reflexão é trazida à tona, curiosamente, pela cabelereira tristonha que aparece em cena somente para falar de coisas como o destino e a nossa capacidade limitada de manobra diante de um caminho que estaria escrito. Há pontas um pouco soltas demais, como a eutanásia gerando num arrependimento motivador – sendo que Nikola já estava interessado em viagens no tempo antes de consentir a morte induzida da mãe. Porém, Sergio Vargas Paz acena para uma larga e rica tradição de gênero (haja vista as repetições estético-narrativas). Infelizmente, nem sempre se decide entre brincar com modelos ou reproduzir os diversos lugares-comuns do sci-fi para celebrá-los (vide o cientista perturbado). A eficiência maior está na forma como ele constrói esse mundo hiperconectado, no qual a protagonista desenvolve uma dependência praticamente patológica da tecnologia. Mais do que a onipresença de celulares, telas brilhantes e outros dispositivos, essa submissão fica evidente no fato de que Maria Ana precisa do passado que lhe soa como uma droga viciante.
Filme visto online no 12º Cinefantasy, em setembro de 2021.
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