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Crítica


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Sinopse

A verdadeira identidade de Huch é exposta como consequência direta da invasão de sua casa por ladrões. Antigos desafetos retornam e ele terá de recuperar suas habilidades letais para proteger entes queridos.

Crítica

Uma das lógicas industriais do cinema dita o seguinte: se algo fez sucesso, isso deve ser replicado, copiado e, quem sabe, se desdobrar em uma franquia. Anônimo é escancaradamente um filme realizado na esteira do sucesso da Saga John Wick, tanto que até um de seus cartazes é claramente inspirado no de John Wick: Um Novo Dia para Matar (2017) – cujo roteirista, Derek Kolstad, é o mesmo desse longa-metragem estrelado por Bob Odenkirk. Para efeito de clareza, pode-se dizer que estamos diante de uma soma entre John Wick e Marcas da Violência (2005), ainda que sem a exuberância estilosa do primeiro e tampouco a profundidade psicológica do segundo. O protagonista é Hutch (Odenkirk), homem que tem uma rotina para lá de repetitiva. Diariamente, ele perde o caminhão de lixo, embarca no metrô, recebe uma buzinada como boas-vindas no trabalho e, invariavelmente, volta para casa a fim de dormir com a esposa numa cama dividida por travesseiros. Tudo muda quando a sua casa é invadida por uma dupla de ladrões mequetrefes. Depois de impedir o filho adolescente de continuar se atracando com um dos bandidos, ele começa a sofrer toda sorte de repressões. Parece que o filme vai tocar na sensível questão das expectativas que recaem sobre os homens: a de que sejam fortes, provedores e estejam prontos para proteger a família. No entanto, essas nuances logo perdem espaço à ação.

Que interessante seria se Anônimo se aprofundasse um pouco mais nessa ideia da masculinidade estereotipada que precisa ser encarada depois de uma situação extrema. No entanto, não é isso o que acontece. Hutch rapidamente dá sinais de que não revidou por falta de perícia ou mesmo de coragem, mas justamente porque a sua precisa leitura do cenário lhe indicou ser melhor deixar para lá a fim de evitar transtornos. Assim como em Marcas da Violência, nos deparamos com um sujeito extremamente habilidoso e letal sob o disfarce de homem comum. Aqui, ele deseja comprar o negócio da família de sua esposa e se manter incógnito. Descoberta a verdade, o que temos são variações menos inspiradas de elementos presentes na Saga John Wick. Hutch também é aquele tipo de personagem cuja fama o precede, que intimida inimigos apenas com sua presença ou ao deixar à mostra a tatuagem no pulso que distingue os homicidas mais brutais dos meros mortais. Bob Odenkirk encarna esse ideal de sujeito invencível, capaz de aniquilar sozinho um grupo de arruaceiros, não sem antes também levar umas porradas. Esse típico novo herói cinematográfico pós-John Wick é vulnerável, mas somente até a página dois. Mesmo tendo seu rosto avariado pelos catiripapos dos oponentes, ele certamente possui todas as ferramentas necessárias para derrotar qualquer adversário, por mais temível/agressivo/poderoso que seja.

Em quase tudo derivado da Saga John Wick, Anônimo também pretende construir uma mitologia para emoldurar o protagonista. Hutch conversa com um homem misterioso via rádio e é caçado por membros tipificados da máfia russa – expediente que exala reverência aos anos 1970/80, época da Guerra Fria na qual os piores vilões do cinema norte-americano vinham da Rússia. Além disso, Hutch dá indícios do que seria a sua atuação pregressa, especificamente antes de largar a vida de missões perigosas a fim de constituir família. Ainda que a trama seja divertida, com cenas e luta bem coreografadas, o filme deixa muito à mostra essa sua natureza genérica, a condição de subproduto de uma nova tendência de heróis de ação do cinema contemporâneo. Nos anos 1980, Hollywood exportou obras recheadas de brutamontes, de homens musculosos que encarnavam a noção do “exército de um homem só”, a dos sujeitos capazes de entrar na floresta apinhada de inimigos, resgatar reféns de uma guerra há muito terminada e sair dessa situação extremamente perigosa quase sem nenhum arranhão. Depois de John Wick, a tendência é esta abordagem maneirista que, inclusive, brinca com a onipotência dos machos-alfa, concedendo aos seus inimigos o benefício de acertar aqueles que não devem ser vencidos. Pode-se dizer que a tal tendência é feita de sujeitos vulneráveis na superfície, mas ainda invencíveis na essência.

Anônimo pega carona numa onda e faz pouco mais do que reiterar os seus princípios básicos. Bob Odenkirk está à vontade como esse indivíduo cuja personalidade assassina ressurge da terra dos mortos a fim de colocar em prática uma vingança. Enfatizando um traço satírico, o cineasta Ilya Naishuller aponta o fato de que Hutch somente resolve revidar para valer quando a sua filha anuncia que teve uma pulseira de coelhinho levada pelos meliantes. De toda forma, podemos até ponderar a respeito da noção social de masculinidade a partir dos desdobramentos da trama, vide uma espécie de recompensa pela brutalidade. Antes de se mostrar novamente ao mundo, o protagonista não despertava desejo na esposa (eles dizem que não fazem sexo há meses) e tampouco admiração no filho mais velho (o rapaz é quem mais sente a “covardia” do pai durante o assalto no começo da trama). Estritamente depois de voltar a ser um homem violento, se desfazendo sem cerimônias de inimigos que caem aos borbotões, ele reacende a chama do amor e volta a receber olhares orgulhosos do seu menino. Levando em consideração que a trama está calcada também na posição desse personagem em relação à família, bem como à própria constituição do tecido social, podemos conjecturar a respeito do panorama ideológico marcado por uma visão antiquada (pois restritiva) de masculinidade. No entanto, os filhos e a esposa (vivida por Connie Nielsen), viram simples notas de rodapé desse filme “quero ser John Wick”.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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