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Sinopse

Anora é uma prostituta do Brooklyn, Nova York, EUA, que casa impulsivamente com o filho de um oligarca russo. Mas o seu conto de fadas é ameaçado quando a família dele quer anular o casamento. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2024.

Crítica

Em certo ponto de Anora, a protagonista é questionada sobre qual princesa da Disney é a sua favorita. Nessa altura já é uma obviedade ela responder “Cinderela”, pois claramente estamos diante de uma releitura moderna e livre da história da Gata Borralheira. Nela, Ani (Mikey Madison) é uma trabalhadora sexual apresentada no exercício pleno de sua atividade profissional. O cineasta Sean Baker mostra demoradamente ela e as colegas seduzindo clientes com corpos desavergonhadamente seminus, fazendo poses, caras e bocas para extrair a maior quantidade possível de dinheiro dos homens em busca de entretenimento adulto. Durante uma folga entre as costumeiras danças sensuais, ela é convocada para atender o figurão russo que acabou de chegar à casa chamada Quartel General. Descendente de russos, Ani fala um pouco da língua estrangeira e por isso ganha preferência. O contratante é Ivan (Mark Eidelstein), típico filhinho de papai com cartão ilimitado para satisfazer os seus desejos mais excêntricos. Ele é uma versão atual e torta do príncipe encantado que pode proporcionar a Ani tudo aquilo que ela não tem. Surge química entre os dois, logo depois vem a proposta por uma semana de exclusividade e, quando menos espera, a garota está gozando de um cotidiano de rainha, com direito a viagem inesperada à luminosa Las Vegas e a ainda mais inusitada proposta que pode mudar a sua vida.

Vencedor da Palma de Ouro (o prêmio principal) no Festival de Cannes 2024, Anora é um filme vibrante repleto de corpos desnudos fotografados com lascívia em tons de azul e vermelho. Sean Baker cria todo um cenário para desconfiarmos dessa felicidade compartilhada entre o herdeiro de um império econômico e a prostituta de quem pouco sabemos. O realizador mantém o suspense sobre uma possível guinada negativa nesse conto de fadas. Quando Ani conhecerá a verdade sobre o playboyzinho mimado que, supomos, deve ter alguns esqueletos no armário? Em que parte da história as férias no paraíso vão se transformar numa visita ao inferno? Vai durar muito tempo a sincronicidade sexual ou em determinado ponto Ivan vai mostrar uma agressividade adormecida? Sim, pois até para uma leitura romântica essa oportunidade oferecida a Ani é boa demais para ser verdade. O cineasta mantém habilmente as interrogações enquanto mostra a alegria de Ani e o carinho de um menino infantil que em nenhum instante rebaixa a prostituta por “alugar” a sua afeição. Desse modo, Baker vai confrontando as nossas expectativas negativas até nos acostumarmos com a ideia de que, contrariando as probabilidades, tudo pode realmente acabar bem para essa Cinderela que deixa de conquistar clientes na boate em troca de dinheiro e passa a morar numa casa digna dos ostensivos palácios.

Mas, é justamente quando o caldo entorna (novamente quebrando as nossas expectativas antes contrariadas) que Anora dá uma derrapada significativa. Na medida em que o castelo de cartas vai desmoronando por conta da intromissão da família de Ivan e da verdadeira natureza desse sujeito paspalhão vindo à tona, a protagonista vira uma espécie de joguete nas mãos de capangas atrapalhados com medo de chefões que fazem estremecer a terra somente com a pronúncia de seus nomes. Exatamente no momento em que o príncipe perde o seu encanto, logo se transformando num sapo verruguento com a sua covardia escrota, Ani é restrita, basicamente, a uma voz protestante no banco de trás de carros de luxo. Ao ser confrontado pelos pais trovejantes (por intermédio de funcionários ineficientes e alarmados), Ivan decide cair no mundo demonstrando que responsabilidade afetiva não é seu forte. Ani, então, é desmascarada como alguém mais inocente do que seu comportamento impositivo e firme deixava à mostra. Na verdade, essa característica é coerente com as demais demonstrações de bondade da personagem, como quando ela poderia muito bem somente aguardar o término do tempo contratado, mas a isso prefere alertar o cliente e com ele transar mais uma vez. Pena que durante a perseguição engraçada que invalida a sisudez, Ani seja reduzida a uma reclamante histriônica.

A caça à Ivan merece mais observações. Nela, quem assume o protagonismo são os capangas da família de Ivan, os armênios cujo medo prenuncia a atitude dos pais do garoto. É muito divertido acompanhar as trapalhadas desses homens que deveriam ser letais e temíveis, mas que acabam revelando as suas falhas e ineficiências nas tentativas de localizar o rapaz que saiu há pouco da adolescência. Durante alguns minutos é engraçada toda a dinâmica que contempla Ani chantageada e leões-de-chácara tentando de tudo para não se transformarem em alvo da ira de patrões igualmente estereotipados. Sean Baker parece fazer tudo de caso pensado, inclusive as brincadeiras com arquétipos dos contos de fadas. No entanto, não evolui a trama para além de uma comédia de erros na qual a Cinderela está indignada pela covardia do príncipe encantado que poderia torna-la rainha. O cineasta estende mais do que deveria a sucessão de equívocos e paspalhices que transforma Ani numa agente passiva. O sexo, algo tão alardeado no começo do filme, é gradativamente deixado de lado. Pensando na proximidade entre Anie e a protagonista igualmente sonhadora de Showgirls (1995), chegamos à conclusão de que Anora é aquilo que o filme de Paul Verhoeven seria sem a discussão adulta sobre sexualidade e estruturas de poder, ainda com umas pitadas óbvias de Uma Linda Mulher (1990). E enquanto pode demonstrar seu talento, Mikey Madison sobressai como a mulher pragmática, mas crente em contos de fada.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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