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Sinopse

Uma revisita à forma como o programa Abertura, exibido na extinta TV Tupi e apresentado por Glauber Rocha, se inseria na sociedade brasileira convulsionada pela ditadura.

Crítica

Diante da nossa realidade contemporânea angustiante – pandemia, desemprego, Amazônia em chamas, autoritarismo no Planalto, etc. – é quase incontornável ter saudade de personalidades antes capazes de botar a boca no trombone e, ao menos, teorizar o Brasil levando em consideração a pobreza como um câncer a ser extirpado. Em Antena da Raça, a cineasta Paloma Rocha, na companhia do codiretor Luís Abramo, remexe o baú do Programa Abertura, atração da extinta TV Tupi apresentada por seu falecido pai, Glauber Rocha. Portanto, um homem e uma rede de televisão que não mais existem. As imagens e os sons preservados (estado derivado do verbo que soa supérfluo aos canalhas) da iniciativa absolutamente impensável (pela coragem) na atualidade negacionista são orquestrados com um misto de sensibilidade de virulência. A partir deles, se pensa o ontem demarcado por discussões sobre a Lei da Anistia e o hoje obscurantista. A dupla de realizadores não se presta a utilizar o material de arquivo como um mero artifício de ilustração, exatamente por entenderem que a verve e a capacidade retórica de Glauber Rocha são ideais para diagnosticar aonde chegamos e porquês.

Glauber fala da ditadura como se recriado no agora por tecnologias próprias à ficção científica ou por obra dos mistérios do gênero fantástico. Paloma e Luís pontuam similaridades, salientam o caráter cíclico da História, isso sem ostentar demasiadamente a intenção adiante diretamente manifestada. As relações, assim, vão sendo construídas paulatinamente, numa operação linda em que o cinema, o teatro, a televisão e a crônica social são convidados a cirandar. O baiano que se converteu em sinônimo de Cinema Novo é reorganizado, por força da bela montagem, como um demiurgo afrontando a realidade, munido das ferramentas que lhe parecem essenciais. Antena da Raça traz trechos do Programa Abertura em que o cineasta/apresentador brinca com pequenas ironias, tais como o espaço de fala dado a Brizola, não o político, mas um transeunte carioca que aposta na contravenção do jogo do bicho e demonstra uma ignorância sintomática quando perguntado sobre o espectro político. Igualmente como se estivesse bradando contra a atual ocupação ostensiva das salas por filmes de super-heróis, ele aparece alertando os pais de que o Super-Homem é uma ameaça iminente.

Antena da Raça não se limita a homenagear o Glauber televisivo, embora o faça. Esse homem, por muitos acusado de distanciar-se das camadas menos intelectualizadas com filmes herméticos, embora interessados nas mazelas do Brasil, aqui é recortado da memória a partir de uma atividade voltada ao povo, efetivamente à massa. A televisão, vista por alguns como estritamente alienante, aqui aparece como meio através do qual se pode discutir as nossas endemias do coletivo. Paloma e Luís estabelecem uma fricção entre os excertos do Abertura, êxitos cinematográficos de Glauber Rocha e depoimentos de gente citada e/ou que conviveu com o baiano de comportamento vulcânico. O teatrólogo José Celso Martinez Corrêa, Helena Ignez (cineasta, atriz ex-mulher de Glauber, mãe de Paloma) e o cantor/compositor Caetano Veloso reverberam os temas e a pegada anárquica, desdobrando o que a morte prematura do sujeito genial e inquieto não lhe permitiu. E na segunda metade desse documentário em que afetos e fatos são habilmente atraídos, o paralelo com o hoje sobressai.

Os apoiadores de Jair Bolsonaro são dispostos como contrapontos angustiantes do clamor de Glauber por liberdade. Exatamente no instante em que se ensaiava uma abertura democrática no Brasil, no fim dos anos 1970, a televisão abriu espaço ao sujeito que parecia seguir à risca um postulado de arte libertária. Em trechos da atração, Glauber faz autopropaganda e instiga um especialista a explicar psicanálise. Em tantos outros, volta suas atenções aos vários homens e mulheres simples frequentemente alijados das discussões definidoras dos rumos brasileiros, algo não tão diferente do que acontece hoje em dia. E, além dessa constatação de que a História é dada a repetições danosas, especialmente quando fustigada pelo poder desmesurado das classes dominantes, Antena da Raça provoca uma saudade imensa da intensidade e da capacidade de mobilização de Glauber. Mas, não se trata de algo banalmente nostálgico, pois consciente das potências à disposição. Não é um filme convocatório. Passa também longe do categórico. É instigante. Nunca ingenuamente romântico.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.  

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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