Crítica

Madame Malek está hospitalizada, com um tumor no cérebro. O doutor afirma que a cirurgia deverá ser tranquila, lhe garantindo mais alguns bons anos de vida. No entanto, seu maior medo é esquecer. Não conseguir, mais, recordar dos pais, que chegaram à França em 1928, vindos da Polônia, e dos quatro irmãos. Os seis – ou seja, sua família inteira, foram recolhidos a campos de concentração durante a guerra e mortos pelos nazistas. Ela, a caçula, a única a ter nascido em solo francês, nunca casou, não teve filhos, e tudo o que tem é a recordação daqueles que lhe foram tirados quase que ao acaso, numa situação tão aleatória quando a que lhe preservou a vida. Por isso precisa falar, compartilhar desse segredo, antes que seja tarde demais e que ele não mais exista, nem mesmo para ela. E quanto aos que forem esquecidos por tudo e por todos, não é o mesmo que nunca tivessem existidos? Esse drama, centro da ação de Antes do Inverno, acaba sendo refletido, ainda que indiretamente, num episódio pessoal vivido por Paul (Daniel Auteuil), médico responsável pela paciente.

Se muitos tem no astro hollywoodiano Robert De Niro um exemplo de intérprete versátil e competente, e se Ricardo Darín seria sua versão argentina, Daniel Auteuil muito bem poderia preencher essa vaga na França. O ator agora cuida dos maneirismos dos mais experientes e compõe um personagem contido, atento aos detalhes e preciso como todo bom cirurgião deve ser. Sua vida é tranquila, ao lado da esposa (Kristin Scott Thomas, sempre melhor quando em francês), a quem confessa – e demonstra – amar com sinceridade. Os dois possuem um filho, um banqueiro bem sucedido, e um neto, o qual convivem com regularidade. Assim como bons e preciosos amigos, que seguido recorrem a eles em jantares e almoços de confraternização. No entanto, logo após ser reconhecido por uma ex-paciente em um café – a atendente afirma ter sido ele quem lhe tirou o apêndice, anos atrás – buquês de rosas passam a chegar quase que diariamente, em casa e no consultório. Seria a mesma garota o tal admirador(a) secreto?

Esse pequeno elemento dissonante em sua pacata rotina tem efeito quase como o de uma pedra jogada no centro de um lago plácido, cujos círculos provocados por sua interferência aos poucos afetarão a superfície por completo. Porém, ao alterar uma vez este cenário, conseguirá ele voltar ao que era antes? Assim como repudia num primeiro momento aquela repetida tentativa de contato, Paul também se deixa levar pela vaidade de estar sendo cortejado, e acaba abrindo espaço para que a jovem se insira nele. Aos poucos começa a se distanciar da esposa, com segredos e mentiras, afeiçoando-se por aquela estranha enigmática. Mas seria um interesse sexual e passageiro ou muito mais profundo? E até que ponto essa relação não seria um reflexo de uma fragilidade psicológica e espiritual que ele próprio não havia desconfiado?

Philippe Claudel, diretor e roteirista de Antes do Inverno, é professor de literatura, e durante anos atuou junto a presidiários, em projetos de recuperação. Essas experiências anteriores são influências decisivas em sua obra, tanto neste novo trabalho como em seu longa de maior prestígio, o premiado Há Tanto Tempo Que Te Amo (2008). Ele retoma esse universo com propriedade, porém muito mais interessante aqui do que revelar o mistério é entender as ações dos personagens, seja o marido nem tão infiel, a garota sem rumo, a esposa independente, o melhor amigo que cobiça a vida deles, ou a irmã desequilibrada que, obviamente, é a única a dizer verdades. São tipos que poderiam tranquilamente cair no clichê, mas que assumem uma posição muito mais complexa. Assim como esse belo filme, de aparência discreta, mas dono de um grande potencial.

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