Crítica
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Sinopse
Amigos de longa data, Mark e Kurt se reúnem novamente para um fim de semana nas montanhas. Para um se trata de um escape momentâneo da vida de casado, para o outro a possibilidade de ter uma nova aventura.
Crítica
O conflito é um elemento praticamente obrigatório no cinema narrativo. Em boa parte dos filmes, é preciso que alguém seja colocado diante de provações; resolva questões; desate nós; aprenda um par de coisas; vença um oponente, etc. É frequentemente após a definição de sucessos/fracassos que os personagens seguem em frente; aprendem lições; sucumbem a algo maior do que suas capacidades; e por aí vai. E se engana quem acredita na ausência de conflitos em Antiga Alegria, típico filme no qual superficialmente pouco acontece. Mark (Daniel London) recebe um telefonema do antigo amigo o convidando para uma rápida aventura pela floresta. É perceptível a tensão no ar entre ele e a esposa, situação acentuada pelo diálogo que expõe as rusgas num relacionamento sobre o qual não saberemos mais nada. Esse é o máximo de divergência que a cineasta Kelly Reichardt apresenta durante todo o longa-metragem. No entanto, o espaço da floresta confere uma pista valiosa para a compreensão dessa dinâmica feita de sutilezas e nuances, que nos convida ao exercício de um olhar microscópico. Sim, pois já que ninguém em cena fica gritando seus problemas, que as dificuldades não são pontuadas e que tampouco sentimentos e contratempos são detalhadamente autopsiados, é preciso apertar o olho e os sentidos em busca da agitação que fustiga a permanência num estado predominante de inércia.
A mata fechada é um espaço imprescindível também como metáfora. Ela não é necessariamente calma, apesar das aparências enganosas. Kelly Reichardt evidencia isso por meio dos sons, quando finalmente a dupla de protagonistas – completada por Kurt (Will Oldham) – encontra a fonte termal na qual pretende gozar de esperados momentos de relaxamento. Apesar dos homens celebrarem a geografia como refúgio impermeável à agitação da cidade, lugar pretensamente sereno, o desenho de som sinaliza que há um universo se movimentando ao largo da percepção imediata desses sujeitos. Por isso a ideia antes mencionada do olhar microscópico. Afinal de contas, se chegássemos efetivamente bem perto do mundo selvagem veríamos que ele é caracterizado por uma ebulição intensa, demarcado por violências e outros elementos/noções praticamente invisíveis a olho nu. Diante desses amigos de longa data, ao redor dos quais visivelmente quase nada está se movendo, nos é repetidamente renovado o convite para apertarmos a vista a fim de alcançar aquilo que o testemunho apressado do cotidiano não alcança. Esse exercício revela pequenos indícios importantes, tais como a melancolia de Mark e a angústia praticamente infantil de Kurt. Na esteira dessas constatações surge a questão: como eles chegaram até esse ponto específico? Porém, a realizadora não pretende obter as respostas.
A falta de vontade de escarafunchar as profundezas dos protagonistas de Antiga Alegria não deve ser entendida como ausência de interesse. Pelo contrário, pois apurar as entrelinhas tende a demonstrar mais. Para compreender melhor essa estratégia, é preciso voltar à forma peculiar como Kelly Reichardt sugere/pulveriza conflitos na narrativa. Em boa parte dos filmes, somos apresentados aos personagens no instante em que problemas se impõem ou um pouco antes das nuvens escuras prenunciarem tempestades. O aparecimento do que precisa ser resolvido/aprendido/completado justifica o recorte. Já neste filme, a cineasta norte-americana não sinaliza a subida de Mark e Kurt montanha acima, por exemplo, como anúncio do prestes a acontecer, sequer anteriormente mostrando o reencontro motivado por algo potencialmente provocador. Os protagonistas são enxergados num intervalo praticamente banal. Ainda que a conexão com a natureza fuja dos seus cotidianos, se trata do deslocamento em meio ao qual esses homens se deixam um pouco mais à mostra. Não muito além disso. Eles não retornam às suas rotinas modificados, iluminados ou donos de conhecimentos capazes de tornar suas vidas melhores dali para adiante. Portanto, se trata de um road movie que subverte a lógica básica desse tipo de filme, uma vez que os tão vitais aprendizados e destinos são bem relativizados.
Assim como em outros de seus filmes, Kelly Reichardt demonstra um domínio impressionante da linguagem cinematográfica e um conhecimento equivalente das figuras e dos pressupostos com os quais deseja romper. Ela tem plena noção de que o acúmulo de histórias orientadas por conflitos claros cria enormes expectativas na plateia. E brinca com isso, frustrando tendências estrategicamente. Um dos amigos poderia se perder ou acidentar-se na floresta; a cachorra Lucy poderia ser uma companheira vulnerável num ambiente imprevisível; alguma lembrança pinçada do passado poderia se encarregar de azedar a relação; uma revelação poderia reconfigurar o elo retomado sabe-se desde quando tenha sido colocado à prova pela última vez; a esposa poderia reivindicar a volta e estragar os planos; os dois poderiam se perder de maneira inapelável; quando Kurt massageia Mark, a resistência ao toque masculino poderia estranhar tudo. Poderia, mas nada disso se concretiza. Os pequenos entraves nunca se impõem como impeditivos ao que ambos pretendem na floresta. O acúmulo das sutis barreiras aumenta a densidade desse painel repleto de silêncios, hesitações, meias palavras e outros sinais dos temperamentos desses homens. Tanto ao aproximar-se dos personagens (para lhes prestar atenção) quanto ao se distanciar deles (para lhes dar privacidade), a câmera transborda empatia. Os conflitos existem aos montes, mas são represados, como as lágrimas que alguém triste tenta esconder dos outros.
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