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Sinopse

Antígona peita as autoridades estatais para honrar um de seus irmãos e libertar o outro da prisão. Aluna e cidadã modelo, ela cresceu num ambiente de legalidade falha. Ele enfrenta dificuldades inimagináveis nesse processo.

Crítica

Livremente baseado na obra de Sófocles, Antígona, da canadense Sophie Deraspe, transporta parte dos elementos da tragédia grega para um contexto sociopolítico atual, direcionando seu olhar a uma família de imigrantes argelinos que mora no Canadá. Ao lado da avó, Meneceu (Rachida Oussaada), e dos irmãos, Polinices (Rawad El-Zein), Etéocles (Hakim Brahimi) e Ismênia (Nour Belkhiria), a personagem-título (vivida por Nahéma Ricci) parece levar uma vida bastante adaptada à realidade ocidental, ainda que a precoce perda dos pais permaneça como uma sombra sobre todos em sua casa. Aluna exemplar e vivenciando o início de relacionamento com um colega de classe, Hémon (Antoine Desrochers), a jovem se vê novamente tragada pela fatalidade quando, durante uma batida policial, Etéocles é assassinado a tiros por um oficial da lei e Polinices é detido por agressão, sendo condenado à extradição. Se na peça de Sófocles, Antígona era presa ao enfrentar o rei Creonte para que Polinices fosse enterrado de acordo com as tradições, aqui a jovem acaba condenada por promover a fuga do irmão, iniciando uma jornada em busca de justiça e da própria liberdade.

Desde o princípio, Deraspe estabelece Antígona como uma personagem ligeiramente deslocada da realidade dos outros. Ao mesmo tempo introspectiva e eloquente, a garota parece já carregar o fardo da responsabilidade, bem como a disposição para defender seus valores bem definidos sobre justiça, amor, lealdade e família, que a coloca em choque com as leis dos homens. Sem a personificação de um antagonista direto, como Creonte no texto original – o personagem que aqui se aproxima de uma versão deste é Christian, pai de Hémon, um político que nunca chega de fato a ser uma figura opositora – Deraspe transfere tal papel ao Estado, representado por seus agentes: a juíza, o chefe de polícia ou mesmo a funcionária do reformatório juvenil. Uma escolha, a princípio, interessante, visando amplificar a luta de Antígona, não sendo direcionada e pessoal, mas sim contra o estado das coisas, com a cineasta parecendo inclinada a tratar de uma série de temas efervescentes e atuais, como o abuso de poder e a violência policial, a questão dos refugiados, xenofobia, patriarcalismo, etc.

Ainda que povoem o universo narrativo, tais temáticas, assim como as próprias figuras de antagonismo, acabam não tendo toda a sua potência explorada. Isso se deve, principalmente, a certa aura de ingenuidade que envolve a abordagem de Deraspe. Algo presente desde o plano de fuga de Polinices arquitetado por Antígona, passando por grande parte das sequências de tribunal – com dinâmicas e situações que soam pouco críveis – pelas montagens que transpõem os debates e o retrato da opinião pública para uma linguagem de internet, entre o videoclipe, os memes e as interações de redes sociais, ou ainda em algumas referências, como o detalhe da publicidade na lateral do ônibus sobre uma montagem de Édipo Rei – no original, Antígona e os irmãos são filhos do relacionamento incestuoso entre Édipo e a mãe, Jocasta.

Tais momentos trazem uma leveza por vezes pueril, que distancia a narrativa de seu cerne trágico, dramático, fazendo com que, mesmo entre mortes, prisões e outros traumas não se sinta plenamente a gravidade das situações. Ao invés de dar densidade às consequências, Deraspe se dedica a retratar a construção do ícone, a transformação de Antígona em mártir, expondo a grande capacidade da jovem em mobilizar e sensibilizar aqueles que a cercam, do advogado e das companheiras do reformatório a anônimos e até mesmo o pai de Hémon, que tem sua postura política e hesitante abalada pela obstinação da garota. Para sua sorte, a cineasta encontra na novata Nahéma Ricci uma intérprete que responde com total desenvoltura e entrega às exigências do papel. Por trás da aparente fragilidade física, a atriz revela toda a força e convicção de Antígona, entre lágrimas silenciosas, olhares repletos de significados e rompantes de emoção, como no discurso coberto de dor e fúria no tribunal.

A capacidade de Ricci em manter o espectador sempre próximo da protagonista e de sua visão de mundo – mesmo quando esta é contestada e levemente estremecida pela exposição dos atos condenáveis de seus irmãos – se mostra o grande trunfo de Antígona e de sua realizadora, que acaba se encontrando, até mesmo no quesito autoral, quando abandona de vez o realismo social em busca de algo de fantasia filosófica. Seja na sequência do sonho/pesadelo, na qual consegue inserir sua releitura de Tirésias, o profeta cego, ou na visualmente bela cena de sexo na chuva, em meio à natureza. Oferecendo um desfecho que também almeja essa poesia, Deraspe cria, assim, uma versão do mito capaz realmente de dialogar com o mundo atual e, ainda que não consiga extrair toda a força possível, lança um olhar reflexivo sobre muitos temas que pedem um debate imediato.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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