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Sinopse

Apenas Alguns Dias conta a história de Arthur Berthier, crítico de rock relegado às reportagens gerais. Após destruir um quarto de hotel, é ferido por um policial enquanto cobre a desocupação de um campo de refugiados. Nessa ocasião, se apaixona por Mathilde, a líder da associação Solidariedade Exilados. Querendo ajudar, concorda em abrigar Daoud, um jovem afegão, pensando que será por pouco tempo. Seleção oficial do Festival Varilux de Cinema Francês 2024

Festival Varilux

Crítica

O cinema tem contribuído de maneiras diversas para a discussão sobre a crise migratória que assola o mundo. Algumas obras se focam na dificuldade de aceitação dos refugiados pelos nativos de metrópoles europeias. Outras têm como protagonistas os homens e as mulheres obrigados a sair de suas respectivas casas para tentar a vida em lugares hostis às suas presenças. Selecionado para o Festival Varilux de Cinema Francês 2024, Apenas Alguns Dias decide pegar o caminho da valorização da solidariedade, em meio a isso aderindo a certos clichês e se desviando de outros para construir uma trama em que os personagens são um tanto opacos. O protagonista é o jornalista Arthur (Benjamin Biolay), especialista em música emprestado à editoria geral depois de uma noite de excessos dignas dos astros de rock. Nessa nova função, ele vai cobrir as agitações em torno de um centro de refugiados em Paris e acaba sendo agredido pela polícia. Podemos considerar a estratégia de engajamento emocional proposta pela cineasta Julie Navarro um pouco dúbia, pois somente quando o francês branco sofre na pele a violência ela é encarada como algo socialmente condenável. Se ao menos a realizadora enxergasse criticamente a atenção da imprensa e de outras áreas da sociedade a isso...De toda forma, esse homem sempre de jaqueta de couro é o personagem clássico que engrandece em contato com o outro.

Seria muito fácil Julie Navarro rezar pela velha cartilha de alguém simplesmente recebendo lições de vida ao ser obrigado a acolher um vulnerável. Na verdade, em parte é isso o que acontece, mas não estamos diante de um aprendizado simplório. Isso porque Arthur toma a iniciativa de dar segurança de moradia ao afegão Daoud (Amrullah Safi). Trata-se de um gesto altruísta que manifesta a sua política pessoal. Ele não é ensinado a isso, simplesmente faz porque acha correto. É de se esperar que Apenas Alguns Dias tenha uma crise, quem sabe motivada pela impaciência do jornalista com a morosidade do sistema que limita a sua privacidade. Felizmente as coisas não são bem assim. Até quando surge o diagnóstico de sarna proliferada entre os exilados oprimidos, o francês tem uma atitude muito mais digna do que a maioria teria: se foca no tratamento e não fica atribuindo responsabilidades. Até por conta desse comportamento correto que Arthur tem com Daoud, trata-se de uma forçada de barra a guinada que o roteiro dá em direção a uma esquemática crise de consciência. É como se o roteiro assinado por Julie Navarro e Marc Salbert (este o autor do livro no qual a trama se baseia) aprove Arthur apenas se o altruísmo for absolutamente incondicional. Tanto que o meio circundante (amigos, filha, etc.) o critica por aceitar os trâmites oficiais sem muito questionar o seu hóspede sobre aquilo.

É louvável o esforço de Apenas Alguns Dias para escapar a certos lugares-comuns enquanto cede a outros como uma espécie de concessão calculada. Fazendo uma força danada para encontrar equilíbrio entre as obviedades e o olhar com certo frescor para uma questão tão debatida no cinema contemporâneo, a cineasta se esquece de elaborar as pessoas como seres complexos e eventualmente até contraditórios. Em parte, isso se deve à opção por não fazer um filme de personagens, mas de circunstâncias. Para a abordagem de Julie Navarro é muito mais importante construir um discurso sobre a política migratória (sem entrar em tantos pormenores ou fazer críticas abertas) do que encarar as nuances dos aspectos pessoais ligados à crise. Pode-se dizer que a opção é por um cinema de recorte mais humanitário do que necessariamente humanista. Dentro do processo de celebrar a solidariedade como o principal antídoto à intolerância que transforma as migrações em movimentos potencialmente divisores nas sociedades atuais, elementos como as recompensas pessoais dos voluntários e mesmo a subjetividade dos refugiados passam a ser itens secundários numa cadeia de prioridades narrativas. Aliás, fica o questionamento: não será a hora de aposentar de vez a perspectiva que trata expatriados apenas como vítimas a serem socorridas? Nesse caso, o altruísmo não reivindica demais as atenções?

Falta profundidade aos personagens de Apenas Alguns Dias. Arthur é o porra-louca representante da classe média mais ou menos consciente que, além de auxiliar o afegão em caso de necessidade, não exibe muito mais desejos. A voluntária interpretada por Camille Cottin também é pouco investigada para além dos discursos progressistas e socialmente engajados – ela representa o alvo numa dinâmica romântica que poderia facilmente ser retirada do enredo. Isso porque Arthur não é definido por sua busca amorosa, tampouco pela maneira como estende a mão a Daoud ou ainda pelo posicionamento diante das injustiças de um mundo hostil a tudo que fuja ao padrão eurocêntrico. Tampouco faz alguma diferença ele ser um jornalista ligado à música, pois Julie não valoriza como poderia, por exemplo, os momentos de intercâmbio cultural entre anfitrião e visitante. A mensagem de tolerância e o enaltecimento da solidariedade são muito bem-vindas, ainda mais numa realidade em que tais atributos são cada vez mais escassos. Porém, a trama exala um cheiro de anacronismo ao falar de refugiados, sem construir as suas subjetividades, a partir da perspectiva dos ocupantes de uma classe média engajada. Arthur é visto como homem, Daoud é compreendido apenas como o pobre infeliz a ser ajudado. Desse modo, parece que o mais importante é elogiar “os nossos bons” às custas da submissão do outro.

Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês em outubro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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