float(12) float(3) float(4)

Crítica


6

Leitores


3 votos 8

Onde Assistir

Sinopse

Xian Tian resolve voltar para sua terra natal após terminar um relacionamento com um homem casado. Ela terá de cuidar do pai, que sofre de Alzheimer, enfrentando uma turbulência enorme quando a doença avança.

Crítica

Em sua raiz, Apenas Mortais (2020) constitui um filme sobre a morte. Discute-a a finitude do corpo, da mente, dos relacionamentos, dos sonhos para o futuro. O diretor Liu Ze demonstra verdadeira obsessão pela impermanência das coisas, iniciando sua narrativa num contexto de deteriorações (o vizinho da família morreu, o irmão mais velho morreu, o namoro acabou, o trabalho foi abandonado) e estudando a progressiva perda de referências a partir da realização do luto real e simbólico. Xian Tian, uma mulher em fase de transição geográfica, profissional e afetiva, se vê imersa em situações muito maiores do que si mesma, e sobre as quais não possui controle. Neste filme liderado por mulheres, são elas que precisam cuidar do lar, garantir as economias e cuidar da saúde dos entes queridos. Ao contrário do painel de orgulho masculino ou da figura patriarcal centralizadora, a narrativa enxerga uma China contemporânea onde a política do filho único constitui um passado distante, as mulheres estão emancipadas e os núcleos familiares adotam as mais diversas formas.

O principal motor narrativo se encontra na doença do pai idoso, vítima de Alzheimer. Inicialmente, o roteiro elege a filha como protagonista absoluta para acompanhar as reações à convalescência. Aos poucos, esta posição se dilui: o drama começa a observar a mãe e o próprio pai em suas vidas cotidianas, inclusive se esquecendo da jovem durante momentos importantes. O cineasta nunca sabe ao certo se oferece um ponto de vista subjetivo sobre as dores de uma personagem específica, ou se dá um passo atrás e retrata o panorama por meio de um olhar externo, onisciente e pretensamente objetivo. Este curto-circuito na condução provoca alguns problemas: somos convidados a nos identificar com Xian Tian, mas as questões fundamentais sobre o emprego abandonado, o término de uma relação envolvendo um homem casado e o início de um novo namoro ocorrem por milagre, sem qualquer investigação das dúvidas ou desejos desta mulher. Fala-se em sexo de maneira crua e não sentimental, sem podermos compreender tamanho desapego da protagonista. Embora esteja presente na maioria das imagens, a subjetividade da heroína permanece inacessível ao espectador. A premissa lhe permite apenas reagir ao caos.

Uma cena evidencia este dispositivo: perto do clímax, o pai com demência suja as próprias calças; mãe e filha briga no quarto, e o namorado de Xian Tian decide limpar o traseiro do homem abandonado no banheiro. Não sabemos o que a filha pensa sobre isso: a câmera favorece a dinâmica de diversas pessoas entrando e saindo de cômodos, indo e voltando de corredores. Essa percepção é reforçada pelo trabalho com extensos planos-sequência. Os deslocamentos da imagem são atenuados por alguma forma de estabilizador de imagem, que permite ao diretor de fotografia transitar pela casa durante diversos minutos, flagrando um conflito na sala enquanto outro ocorre na cozinha. A dinâmica destas movimentações contribui bastante à fluidez, e também à exploração dos espaços: a cidade se torna um ambiente palpável, especialmente quando o pai foge pelas ruas, enquanto o lar de classe média tem seu excelente trabalho de direção de arte e iluminação devidamente valorizado. Por um lado, Apenas Mortais busca uma estética da naturalidade, com cenas cotidianas envolvendo personagens-arquétipos comuns (a mãe resistente, o pai envergonhado pela situação, a filha ausente, e a outra fragilizada), por outro lado, reforça a situação para fins de exemplaridade.

Isso significa que todas as passagens esperadas a respeito do Mal de Alzheimer estão presentes, numa velocidade espantosa: o pai se esquece da filha, foge de casa, torna-se incontinente, responde de modo agressivo. O diretor minimiza o processo de gradação para investir em grandes transformações repentinas. A mãe alerta a filha sobre a possibilidade de o marido engasgar, e duas colheradas mais tarde, ele engasga. O homem tosse; uma cena mais tarde, é diagnosticado com pneumonia, e na cena seguinte, encontra-se em estado crítico. Xian Tian reencontra o amigo solteiro, e no instante seguinte, apresenta o novo namorado aos pais. O roteiro salta abruptamente entre etapas, numa mecânica de causa e consequência incapaz de desenvolver evoluções sutis. Aliás, a sutileza foge às pretensões do cineasta chinês, que embute grandes orquestrações ao piano durante conflitos tristes, além de catarses coletivas permitindo a todos os membros da família espiarem suas dores juntos. Ele se preocupa tanto em tornar o drama visível que privilegia as manifestações físicas da doença à perda da memória, por exemplo. Existem diversos momentos do pai perdendo o controle da bexiga ou das funções intestinais, porém pouco trabalho acerca do esquecimento. O diretor investe no melodrama no sentido mais tradicional e externalizado do termo.

Ao menos, notam-se tentativas de atribuir alguns respiros poéticos aqui e acolá, visando equilibrar a jornada asfixiante de tragédias. Cenas envolvendo a fumaça num parque, a cortina do quarto durante a noite e um espetáculo de dança típica rompem com a obrigatoriedade da cronologia e da linearidade, acenando ao teor de delicadeza almejado pelo diretor. Mesmo assim, a mise en scène nestes casos ainda aposta em planos próximos demais dos rostos, ou então na trilha sonora invasiva. Liu Ze aparenta ter receio de não tratar as situações tristes com o peso merecido, por isso faz questão de reforçar o seu pesar diante das mesmas. Assim, elabora um filme piedoso, cúmplice dos personagens, e fatalista em sua possibilidade de reinvenção ou melhoria – basicamente, cada pessoa apenas aceita o peso da morte inevitável e súbita. Ao invés de Carpe Diem, o cineasta prefere Memento Mori. Ao menos, dentro de seus moldes clássicos e previsíveis, a produção se revela competente, fugindo a maniqueísmos, e destacando o bom trabalho dos atores (o pai, em especial, ultrapassar por meio de gestos e expressões o status do corpo sofredor). A ternura da direção por todas aquelas pessoas se torna palpável, o que proporciona uma experiência mais carinhosa do que emocionalmente manipuladora.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *