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Sinopse
Em Apocalipse nos Trópicos, quando uma democracia termina e uma teocracia começa? Investiga a crescente influência que líderes evangélicos exercem sobre a política brasileira. Entrelaça passado e presente, apresentando um espelho inquietante para o resto do mundo. Teve sua première mundial no Festival de Veneza 2024.
Crítica
Assistir a Apocalipse nos Trópicos em 2024 é reviver um trauma coletivo. É relembrar como foram assustadores os anos do extremista Jair Messias Bolsonaro ocupando a presidência do Brasil com apoio de uma numerosa massa de eleitores que passaram um cheque em branco para as suas barbaridades. O novo longa-metragem da cineasta Petra Costa chega de maneira ligeiramente tardia numa espécie de arqueologia dessa ascensão da extrema direita no Brasil. Desde que Bolsonaro surpreendeu analistas políticos e se elegeu ao cargo máximo do Executivo brasileiro, com uma plataforma que misturava agressividade e religiosidade deturpada, muitos filmes foram realizados para tentar compreender esse fenômeno. A própria Petra chamou a atenção do mundo com o seu Democracia em Vertigem (2019), documentário que chegou a concorrer ao Oscar. Desta vez o foco é um pouco diferente, pois a cineasta investiga o fenômeno evangélico, mais especificamente a atuação política vinculada à chamada teologia da prosperidade. Mesclando imagens de arquivo e entrevistas inéditas, ela aponta a um panorama aterrador do projeto de poder baseado na centralidade das figuras messiânicas em cargos eletivos importantes. Não se trata de um mergulho vertiginoso, mas de um sobrevoo resumido. Um sumário das forças em coalisão que propiciaram uma mudança radical e crescente no Brasil.
Uma das primeiras perguntas que podemos fazer diante de Apocalipse nos Trópicos é: a quem o filme se destina? O público com tendências ideológicas à esquerda certamente vai se reconhecer nessa bem-vinda indignação de Petra diante de uma situação complexa coalhada de formadores de opinião que utilizam os altares de seus tempos como palanques eleitorais. Pode-se imaginar, com algum grau de certeza, que a plateia com inclinações ideológicas à direita rechace de imediato a argumentação da cineasta e nem encontre motivos para levar a sério essa denúncia. No entanto, Petra não está realmente fazendo um filme com base na utopia da imparcialidade. Fica claro a partir de qual perspectiva ideológico-política o documentário é construído, o que tende a determinar previamente a sua adesão. Nesses tempos malucos em que vivemos, nos quais as discordâncias são tratadas como desculpas para pequenas guerras e tentativas de anulação do outro, seria surpreendente que essa produção conseguisse, entre méritos e deméritos, penetrar em redutos fortemente direitistas. Assim, os esforços de Petra entram naquele lugar do “pregar para os convertidos”, o de apresentar posicionamentos antecipadamente aceitos pela esmagadora maioria do seu público. Sinais desse agora aqui totalmente contemplados pela abordagem menos informativa do que assumidamente parcial.
Como resumo dos anos Bolsonaro, Apocalipse nos Trópicos não vai muito mais além do que foram outros esforços documentais semelhantes. Mesmo que oficialmente o seu ponto de partida seja específico (a escalada evangélica às esferas de poder político), Petra Costa reitera muitas coisas já exauridas na opinião pública, às vezes não resistindo à tentação de refazer um resumo melancólico repleto de imagens de Jair Messias Bolsonaro como homem ridículo, cuja eleição à presidência do Brasil foi uma piada de mau gosto indicativa das nossas crises atuais. O filme ganha muita força retórica quando se detém naquilo que o torna específico, ou seja, nas maquinações das lideranças evangélicas confessando abertamente seus projetos. Petra tem um grande personagem nas mãos. Não se trata de Bolsonaro ou mesmo de Lula, o atual presidente cuja vitória representou a esperança da fatia progressista do eleitorado. A figura mais forte desse documentário selecionado para o Festival do Rio 2024 é o pastor Silas Malafaia, um dos grandes defensores da conexão visceral entre política e religião. A realizadora consegue alguns flagrantes muito bons da atuação ladina de Malafaia, vide a manipulação do discurso de Bolsonaro em um palanque da campanha de reeleição e os trechos de intimidade em que o pastor revela mais do que sua liderança espiritual com uma perigosa inteligência maquiavélica.
Apocalipse nos Trópicos ganha relevância quando a câmera investiga a fundo essa personalidade ardilosa de Malafaia, um líder de discurso impositivo que representa o projeto de poder dos evangélicos no Brasil. Não há nada de delirante na fala desse homem que começou a ascender combinando o poderio econômico de sua editora à igreja herdada do sogro – a mesma que ele transformou num império midiático com enorme influência política. Malafaia se gaba da proximidade com Bolsonaro, deixando transparecer uma estratégia chantagista diante dos candidatos eleitos com a ajuda de sua abrangência massiva nos tempos espalhados pelo mundo. Pena que Petra não estude com ainda mais afinco a atuação de Malafaia próxima do gangsterismo, frequentemente voltando à intenção de fazer um novo retrato resumido do que convencionamos chamar de bolsonarismo. Mesmo os detratores do cinema de Petra, que pegam no pé de sua tendência a dar ênfase a si mesma, de uma disposição pelo “eu”, vão ter pouco material para criticá-la negativamente agora. São raros os trechos em que ela se insere no núcleo desse raio-x, primando desta vez por um panorama mais geral. Nas partes em que se concentra efetivamente em Malafaia como um vetor da escalada evangélica rumo ao poder, o filme acrescenta itens valiosos na arqueologia que o cinema vem fazendo desses anos nefastos.
Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.
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