Crítica
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Sinopse
Um casal tenta superar o trauma após um violento ataque homofóbico. Enquanto Marco reluta em voltar ao trabalho, por medo da reação dos colegas, Luciano não consegue mais sair de casa e fica indignado com a solidariedade efêmera das pessoas na Internet.
Crítica
Um gesso na mão, os olhos inchados e roxos, pontos de sutura nas pálpebras. Os ferimentos de Marco (Luiz Bertazzo) e Luciano (Vinícius Sant) são fundamentais para o espectador conhecer os dois protagonistas – afinal, nós os encontramos em momento posterior ao crime homofóbico de que são vítimas. O roteiro poderia efetuar idas e vindas entre o idílio do casal amoroso e os traumas pós-ataque, no entanto, o diretor William de Oliveira prefere se ater a um eterno presente. As circunstâncias do crime são nebulosas (jamais se menciona qualquer ímpeto de justiça ou vingança contra os responsáveis), e o futuro de ambos, incerto. Onde a maioria dos autores privilegiaria a trajetória de superação, o cineasta se atém à dificuldade de superar, ou seja, à permanência das cicatrizes físicas e emocionais. Os personagens se mostram incapazes de refletir sobre qualquer outro tema além da agressão, e o curta-metragem, também. Por isso, da primeira à última imagem, o projeto faz menção ao corpo dolorido, à dignidade fragilizada e ao senso de impotência. Começamos numa cama triste e fria, onde os amantes evitam a comunicação, e terminamos num aceno discretamente otimista, porém ainda centrado no medo. O discurso se foca num período específico do processo de cura, tornando-se mais realista do que tantas obras reforçando a crença ingênua de que o tempo repara todos os males.
A ambientação representa um elemento fundamental ao diretor. Os protagonistas transitam por uma casa fria, escurecida, sem música nem sons ao redor. Eles possuem o olhar absorto, a expressão constrangida, sustentando uma mistura de tristeza e raiva. Quando saem para as ruas, deslocam-se através de dias nublados e brancos; recebem os colegas de trabalho com acenos protocolares, além de se confrontarem ao pragmatismo violento do chefe (“O que passou, passou. Bola pra frente”). A tristeza constitui mais do que o tema e o objeto de estudo: ela contamina a estética deste filme pouco acolhedor, seja pelos planos fixos e distanciados, seja pela ausência voluntária de catarse. Compreende-se que Marco e Luciano já tenham chorado a dor das circunstâncias do crime, do preconceito da mãe e do esquecimento veloz dos amigos. O mundo seguiu em frente, mas o casal, não. O ato de filmar um impasse, uma inércia ou inação proporciona um desafio a qualquer autor, surgindo o risco de transmitir o tédio do roteiro à experiência do espectador. Felizmente, neste caso, os silêncios estão repletos de tensão – sabemos exatamente o que cada namorado pensa, e o que gostaria de ter dito ao outro quando se cala. Nenhum ator entra vazio em cena, como se diria no teatro. A incapacidade de gritar aos quatro cantos o absurdo de um ato bárbaro diz muito a respeito do estado emocional destes homens.
Este mérito recai tanto sobre o diretor e sua equipe técnica, em trabalho coeso, quanto sobre os dois atores. O curta forneceria o material perfeito para Bertazzo e Sant explorarem o aspecto piedoso ou martirizante. Se estes personagens pertencessem a uma telenovela ou a um longa-metragem popular, seriam provavelmente percebidos enquanto pessoas de bom coração exploradas por um mundo cruel, ou então exemplos assustadores do que acontece àqueles que desviam da norma. Oliveira foge a ambas as abordagens, seja a moralista, seja a paternalista. Somos convidados a observar o casal pelo prisma da dificuldade em aceitar a violência, ou seja, ultrapassando o mero lamento dos fatos. Os atores principais estão muito bem em cena, trabalhando de maneira realista os diálogos, em ritmo e estilo despojados, além dos corpos retraídos. Aqui, a dificuldade de interação se converte no objetivo da direção: há não-ditos importantes sugeridos pelo roteiro, a exemplo do fato de Marco ter corrido do espancamento, deixando o namorado para trás. A confiança se rompeu – neste sentido, encontramo-nos próximos da catástrofe externa de Força Maior (2014), onde o abandono de entes queridos em situação de perigo leva à degradação dos laços afetivos.
Talvez Aquele Casal pudesse ser criticado por não desenvolver um discurso mais explicitamente contestador. Trata-se de uma óbvia escolha do cineasta, que privilegia a melancolia em detrimento do didatismo nas falas ou em outros recursos de pós-produção (como letreiros trazendo dados informativos sobre a violência no Brasil). No entanto, a iniciativa corre o risco de ser interpretada enquanto mera constatação de um problema, fugindo à responsabilidade de questionar origens, causas e possibilidades de contorná-lo. O curta-metragem descreve a existência da homofobia e os danos profundos causados pela mesma. Embora possua a vantagem de encarar o tema pela subjetividade dos homens gays, falha ao inseri-los dentro de um contexto sociopolítico. A classe social, origem ou raça influi no caso? A história se passa no Brasil pré-Bolsonaro ou pós-conquista do poder pela extrema-direita religiosa e truculenta? Que disciplina é lecionada pelo professor Marco, e de que maneira sua condição de intelectual afeta a interpretação do crime? Oliveira se concentra numa esfera rica psicologicamente, porém distanciada em termos sociológicos. A conversão da premissa numa fábula de caráter universalizante serve mais às conclusões de ordem moral (“É errado agredir pessoas por sua orientação sexual”) do que às reflexões específicas a respeito do meio capaz de suscitar tais ataques.
Filme visto no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.
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