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Sinopse

Em Luanda há uma crise insólita envolvendo a queda misteriosa dos aparelhos de ar-condicionado. Matacedo e Zezinha têm a missão de recuperar o tão importante artefato defeituoso do chefe.

Crítica

Os aparelhos de ar-condicionado são uma espécie de totem da contemporaneidade em crise. Esta é esquadrinhada de modo fantástico e poético pelo cineasta Fradique em Ar Condicionado. A função dos eletroeletrônicos é modificar a natureza, gerar calor ou potencializar o frio dos ventos que assim não o são originalmente. Signos de uma Luanda na qual é difícil encontrar a cor verde entre os predominantes matizes cinzentos, eles começam misteriosamente a cair dos prédios, causando tensão social. No trajeto que Zezinha (Filomena Manuel) faz diariamente ao trabalho de empregada doméstica numa residência de abastados, ela toma ciência, pelo rádio do veículo, das notícias dessa precipitação insólita dos aparelhos ao solo. Já no local de labuta servil, ela vai ser encarregada de justamente garantir o conserto do exemplar do patrão, para isso pedindo auxílio ao zelador Matacedo (José Kiteculo). Ambos, portanto, estão em meio a uma missão banal, mas que ganha contornos líricos diante do colapso inexplicado dos artefatos antinaturais que se aniquilam.

As teses levantadas pela imprensa – tudo poderia ser parte de um plano conspiratório de fundo econômico, motivado pelo acordo bilateral Angola/China – é apenas a sinalização de que há tentativas de compreender esse fenômeno com parâmetros racionais. No entanto, Ar Condicionado não é um filme preocupado com as explicações e demonstrações cartesianas de fenômenos e/ou comportamentos. Um simples caminhar pela metrópole adquire contornos de enfrentamento alegórico, em virtude da conjugação entre a excelente trilha sonora de Aline Frazão e a fotografia não menos impressionante de Ery Claver. A câmera orientada por Fradique passeia pelos espaços ressaltando a decadência da realidade adestrada pela tecnologia, na qual o progresso se encarrega de embrutecer paisagens e vínculos. Não é raro ver Matacedo, em sua aparente placidez, se deparar com vielas carcomidas pela feiura de uma oxidação que escorre das paredes para sinalizar uma degradação progressiva e mais profunda que a material. As andanças aparentemente comezinhas são lindíssimas, intensificadas pelo trabalho de mixagem de som que adensa a personalidade desse universo.

No plano evidente, Ar Condicionado aborda discrepâncias ocasionadas por abismos sociais. Zezinha, a que vive sonhando com o retorno à ilha de sua infância feliz, é humilhada pelos empregadores. Diante de quem paga seu salário, perde a espontaneidade, pois o dinheiro trata de estabelecer certas distâncias virtuais. Matacedo, cuja liberdade de ir e vir é inerente à sua função, empreende deslocamentos que fornecem ao espectador a possibilidade de enveredar por cenários indicativos dessa constatação desalentada do realizador. Ao trazer para a equação transbordante de afeto um dado de ficção científica, o filme cresce em voltagem poética. A partir daí, apresenta cenas visualmente exuberantes, com enquadramentos muito bem estruturados a fim de delinear um itinerário de sensações que praticamente passa a prescindir da palavra para transmitir a sua essência. A atmosfera é mais relevante que o esclarecimento da curiosa visão dos ares-condicionados como retentores fabricados de memórias orgânicas, ou mesmo o entendimento da substituição do cadáver por eles.

Há providenciais momentos de Zezinha e Matacedo conversando entre as atividades impostas. Nesses intervalos, a sabedoria nutre o desencanto frente a um mundo passível de consumir-se em ferrugem e obsolescências programadas. Referindo-se ao personagem que deveria consertar os equipamentos defeituosos, o zelador afirma que sua suposta loucura não é mais que manifestação de dor. Zezinha rebate de pronto: “Matacedo, cuidado. Ele anda à toa inventando memórias da solidão que só ele sente”. Tais observações, disparadas como se platitudes, ajudam a desenhar a dimensão lírica também presente na bonita justaposição de temporalidades distintas. Tal gesto ressalta a importância das lembranças nesse itinerário que consegue capturar um estado de crises individuais impulsionadas pelas precedentes coletivas. Neste ótimo filme, o convencional e o excepcional dialogam naturalmente. Moradores que se comunicam por telepatia e jovens brigando pela oportunidade de ganhar 20 centavos convivem nesse presente em que a ruína evoca a nostalgia.

 

Filme visto online no We Are One: A Global Film Festival, em junho de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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