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Crítica


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Sinopse

Omar Shargawi é filho de pai palestino e mãe dinamarquesa. Devido às guerras em seu país, cresceu na Dinamarca, onde nunca foi reconhecido socialmente como europeu devido aos traços físicos. Ao mesmo tempo, quando vai à Palestina, é percebido como estrangeiro, por sequer falar a língua árabe. O cineasta discorre sobre a sua identidade fragmentada, marcada por violências familiares e nacionais.

Crítica

Neste filme, o diretor Omar Shargawi deseja falar sobre si mesmo, mas também sobre o dilema de uma construção identitária fragmentada. Filho de pai palestino e mãe dinamarquesa, jamais foi acolhido por nenhum desses grupos, seja pela língua europeia que fala, seja pelos traços árabes marcados no rosto. Ele busca retratar a violência por meio de um documentário igualmente violento em seu ritmo, diálogos e escolhas imagéticas. O retrato que Shargawi faz de si mesmo não tem nada de elogioso. Ele inclui as críticas dos familiares à sua pessoa, expõe seus fracassos, revela os trechos do filme que não funcionaram como queria. Acima de tudo, filma acidentalmente a briga com o irmão, quando o ameaça com uma tesoura. O trauma viria a provocar uma ruptura dentro da família. Árabes Ocidentais (2019) se inicia portanto com um senso de exposição cru, ao limite do perverso. “Por que você está me filmando?”, perguntam irritados o pai e mãe, que nunca concordaram com a participação no documentário. O cinema se torna um gesto de revanche do filho, mas também uma metáfora para a sua dificuldade de inserção social e familiar. O diretor transforma as feridas abertas em performance visual.

Há três grandes momentos, igualmente potentes, na estrutura do filme. O primeiro diz respeito ao documentário “convencional”, no sentido de o cineasta registrar a si mesmo e buscar depoimentos dos pais. A agressividade deste terço inicial se encontra na recusa em participar, ou no choro desesperado do cineasta ao confessar a tentativa de assassinato do irmão. Estamos distantes do retrato da família unida, ainda que exista evidente afeto entre os membros. Diante da recusa do pai em narrar sua infância traumática na Palestina, o projeto parte para uma segunda parte, em resposta à primeira: a ficção. “Se não quer falar por si próprio, você vai então ler o que eu escrever”, decreta o filho ao pai. Shargawi compõe um texto lírico e denso, sobre sentimentos reprisados e identidades roubadas. Ele pede ao pai que interprete a si mesmo, porém com palavras que não sejam as suas. O diretor ousa filmar a morte fictícia do pai por ataque cardíaco, em múltiplas tomadas, reveladas ao espectador como um sádico making of. A ficção se torna avesso do documentário, como se o controle típico da ficcionalidade funcionasse como arma para extrair as confissões que não lhe foram dadas voluntariamente. Explicita-se a posição de poder daquele que filma, enquanto se questiona a ética do cinema na representação da dor alheia.

Passados estes dois momentos, o espectador não sabe ao certo em que acreditar. As linguagens documental e fictícia se contaminam, e não mais se assumem enquanto tais. Caso o diretor não nos alertasse sobre a possível ficcionalidade das cenas, incorreria num problema ético. No entanto, a intromissão das cenas estimuladas, recriadas ou roteirizadas nos levam a um patamar explícito de reinvenção do mundo e de si próprio. Árabes Ocidentais sugere que a distinção entre o fato e o sonho não importa mais: para quem espera do documentário um arquivo do real, encontrará sequências de veracidade suspeita, solicitando nossa constante atenção e interpretação. A briga entre irmãos parece espontânea, acontecendo apesar da câmera, e não para ela – mas seria mesmo real? O cineasta deixa a câmera sobre mesas e bancadas, apreendendo a ação conforme ela se desenha em frente ao enquadramento. Há certa afinidade com o found footage, como se estivéssemos vendo uma obra de terror – algo ressaltado pela sombria direção de fotografia – filmada em tom granulado, escuro, com contra-plongées e zooms próximos demais. Mesmo a estética é invasiva e provocadora, um tanto brusca na maneira como se apropria de rostos e lugares. Shargawi está ao mesmo tempo perto demais (fisicamente) e longe demais (pela difícil intimidade) da família, tendo controle excessivo (via montagem e narração) e controle nenhum (pelas cenas espontâneas diante da câmera fixa, parada).

O resultado é um fascinante exercício de linguagem, reforçado pela estética dispersa e pela narrativa não-cronológica. Ao invés de utilizar imagens referenciais ou saudosistas (fotos e materiais de arquivo), o diretor dissocia som e imagem, colando falas do pai a imagens vazias da cidade, ou depoimentos da mãe a uma série de borrões, emulando a granulação excessiva da película de alta sensibilidade dentro do formato digital – outra forma de violência e de não-pertencimento, diga-se de passagem. Enquanto pai e filho brigam, por exemplo, a câmera se concentra no rosto da mãe, aflita, hesitando entre agir ou permanecer sentada. Há um belo refinamento no olhar, transmitido pelos recursos poéticos empregados na representação da guerra, do exílio, da islamofobia. Ao invés de utilizar imagens reais de tiros e bombas, o diretor leva o pai de volta à casa da infância, na Palestina, e registra os destroços. Em contraste com a briga real dos irmãos, cria-se uma cena de briga fictícia, na qual o cineasta aparece coberto de sangue, em registro típico dos filmes de ação, antes de gritar: “Corta!”. O espectador nunca sabe ao certo onde está pisando, e tamanha desestabilização funciona bem dentro de uma narrativa sobre instabilidades.

Árabes Ocidentais se revela um belo filme-processo, no sentido de se construir enquanto as imagens são feitas. Aparentemente, o diretor tinha uma intenção documental no início, frustrada pela reação das pessoas, partindo para uma ficção crítica que também enfrenta obstáculos e se encerra enquanto tal. O projeto decide assumir a metalinguagem e a trajetória de erros. Acontecimentos graves envolvendo os familiares são incorporados ao filme, sem qualquer sentimentalismo, sem diálogos nem explicações. O diretor sabe quando se calar e deixar as potentes imagens falarem por si próprias. Ao final, atinge-se uma obra sobre afetos ríspidos, famílias rompidas e identidades usurpadas, através de uma estética pertinentemente abrupta. O cineasta se desnuda com impressionante sinceridade, ao passo que homenageia o pai à revelia, quando percebe que o fato de eternizar alguém em imagens consiste numa maneira de conservar esta pessoa para a posteridade – em processo análogo à mumificação ou a preservação em âmbar. Shargawi não tem medo dos traumas, nem das partes ruins. Ele poderia recalcar os momentos mais tristes, mas abraça sua história como um todo, incluindo as ternuras e as mortes. Ele oferece uma obra rica em registros, pulsante enquanto formato e linguagem, atribuindo vitalidade ao gênero tão desgastado do documentário familiar e confessional.

Filme visto online na Mostra Mundo Árabe de Cinema, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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