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Sinopse

André é um jovem morador da Vila Operária, bairro vizinho a uma velha fábrica de alumínio, em Ouro Preto, Minas Gerais. Um dia, ele encontra o caderno de um dos operários da fábrica.

Crítica

A primeira cena de Arábia já magnetiza completamente a atenção da plateia. Nela, André (Murilo Caliari) trafega de bicicleta por uma rodovia. É um plano longo, embalado pelos acordes da música country norte-americana. O fim desse percurso idílico é o núcleo da Vila Operária, bairro de Ouro Preto, em Minas Gerais, onde se encontra incrustada uma siderúrgica que inapelavelmente transforma a paisagem com sua presença bruta. O cotidiano do menino é desvelado habilmente pelos diretores Affonso Uchoa e João Dumans. Tudo é bastante sutil nesse prólogo que dá conta de, principalmente, preparar o terreno à entrada em cena do verdadeiro protagonista, Cristiano (Aristides de Sousa), metalúrgico que cai desacordado sem motivos aparentes. Cria-se uma ligação bonita entre esses vizinhos que outrora se cruzavam fortuitamente pelo bairro, assim que André começa a ler as anotações do sujeito inexplicavelmente tomado por um sono profundo. A partir daí, portanto, o que vemos são reminiscências.

A encenação de Arábia é atravessada por um tom documental, especialmente quando Cristiano pega a estrada após cumprir pena por roubo de automóvel. O filme assume, então, caráter de road movie, cortando Minas Gerais. Cada paragem de Cristiano é marcada por uma função diferente, desempenhada por ele para sobreviver. Isso confere ao longa-metragem uma aura de ode aos trabalhadores, aos homens e mulheres que vendem seu tempo, esgotando-se em jornadas de trabalho muitas vezes penosas, penhorando a juventude para garantir o pão na mesa. Esse viés permeia a narrativa como um todo, configurando sua espinha dorsal, porém sem a necessidade de demonstrações frondosas. O protagonista é um sujeito simples, calejado pelas andanças. A fotografia de Leonardo Feliciano trata de capturar a essência das paisagens naturais, utilizando-as como molduras ao proletariado que assume o nomadismo por falta de opção.

Em Arábia a narração em off não é um elemento facilitador, instância do discurso fílmico a serviço da mera abreviação do caminho entre o espectador e o personagem. Ela nos imerge nas minúcias do comportamento e do pensamento de Cristiano, deflagrando matizes íntimos, desnudando a personalidade complexa desse rapaz cujo confessionário é a folha antes em branco, em que ele despeja, por um exercício solicitado, algo considerado importante. Os realizadores optam por um trajeto afetuoso, sem lançar mão de recursos canhestros que poderiam enveredar a abordagem ao melodrama rasgado. Por exemplo, não é necessário informar os motivos da doença respiratória do irmão de André, pois isso está implícito na cena do garoto removendo a fuligem acumulada na janela. A estrutura industrial de produção afeta a todos, uns mais diretamente, outros de maneira indireta. Como componente narrativo, ela é subjacente e manifesta. Nas perambulações do protagonista, temos diversas esferas laborais e como isso influencia o meio.

O que torna Arábia uma produção singular dentro da nossa recente cinematografia é a interseção entre o íntimo e o social, a fertilidade do produto dessa equação resolvida de forma absolutamente sensível e terna. Enquanto Cristiano conta, por meio da palavra escrita, sua própria história de deslocamentos e novas tentativas, há todo um pano de fundo que elege o trabalho como aquele que dignifica e oprime, ao mesmo tempo. Affonso Uchoa e João Dumans não temem resvalar no sentimentalismo barato ao acessar os códigos do amor e da amizade, pois o fazem com organicidade. O semblante carregado do homem que recebe uma notícia difícil da boca da mulher amada expressa o pesar, reverberado depois pelo dito, neste filme embalado por Maria Bethânia, Raul Seixas, Dorival Caymmi e pelo sotaque mineiro. Ao invés de apresentar efeitos das andanças de Cristiano no jovem, promovendo uma ligação ordinária, os diretores nos transformam em André, preso ao relato de um não mais desconhecido.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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