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Crítica


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Sinopse

Nos anos 1970, três jovens integraram um grupo armado de extrema-direita que executou jovens em nome da luta contra o comunismo no Chile. Eles não são responsabilizados por seus atos, mas um crime cometido por um deles, cinco décadas mais tarde, traz à tona os segredos da organização.

Crítica

A existência de um projeto como Aranha (2019) no cenário de polarização política constitui um feito a celebrar. A produção chilena-argentina-brasileira contradiz alguns dos preceitos fundamentais do anti-intelectualismo reinante: primeiro, a noção de que abordar algum tema equivale a apoiá-lo, e portanto, convencer o público a adotá-lo. Quando a Ministra da Família e o presidente da República defendem que representar a homossexualidade, o feminismo e a luta antirracista equivalem a criar uma nação de robôs militantes pelas causas das minorias, eles desconhecem (ou fingem desconhecer) funcionamentos básicos de espectatorialidade e ponto de vista. É perfeitamente possível discutir um tema do qual se discorde. Isso leva à segunda questão: para ilustrar o ponto de vista dos oponentes, não é preciso ridicularizá-los (nem à esquerda, como faz Michael Moore, nem à direita, como faz Dinesh D’Souza). Um autor pode discutir meandros de um pensamento diferente do seu. Neste ponto encontra-se um dos aspectos mais fascinantes da comunicação artística: a capacidade de reflexão e distanciamento, em oposição a qualquer poder direto de convencimento. Ao contrário do que pensam os atuais governantes, o cinema nunca desempenhou com eficiência o papel de missa ou sermão – ainda bem.

Este suspense dramático retrata um movimento real de extrema-direita, visto pelos olhos da esquerda. Obviamente, existem inúmeras vertentes possíveis de direita, esquerda e tudo o que existe entre elas, sendo factível que representantes dos distintos grupos não se sintam representados nem pelos personagens, nem pelo discurso a respeito deles. Mesmo assim, o cineasta Andrés Wood evita fazer escárnio e transformar numa exposição grotesca as ações do grupo fascista Pátria e Liberdade, que matou chilenos durante o início do governo Allende, supostamente em nome da luta contra o comunismo e o marxismo. A fobia face ao comunismo fornece uma bela ponte entre os anos 1970 e a década atual, embora não constitua o foco da narrativa. O diretor possui respeito por sua trinca de protagonistas, Inés (Mercedes Morán), Gerardo (Marcelo Alonso) e Justo (Felipe Armas), embora discorde da atitude deles. Para imprimir uma separação entre o pensamento próprio e aquele do grupo armado, o cineasta reforça a sensação de derrota e paranoia nos anos presentes. Os três foram derrotados, porém não no sentido de mortos e expostos por seus atos. Pelo contrário, Inés e Justo vivem em conforto financeiro, protegidos pelas amizades com homens poderosos. No entanto, seus ideais de ruptura democrática se tornaram incapazes de mobilizar a sociedade atual. Eles vivem envergonhados, buscando manter as aparências. Paira um sentimento de culpa, ou de orgulho ferido, jamais resolvido entre eles.

Dividido entre presente (século XXI) e passado (anos 1970), entre elenco maduro e jovem, Araña se sai muito melhor na metade contemporânea. As duas primeiras sequências revelam não apenas a qualidade do roteiro de Guillermo Calderón como o talento de Wood na direção. A apresentação de Inés foge ao caráter explicitamente político, entretanto, resume com precisão a personagem: durante um jogo de futebol amador, ela adquire uma postura dominadora, disposta a tomar iniciativas contrárias às regras. A perseguição pelas ruas da cidade, em seguida, resulta numa cena de forte impacto, sublinhado pelos efeitos sonoros e pela montagem. Nenhuma sequência após os vinte minutos iniciais possui a mesma força do surpreendente começo. Mesmo assim, Mercedes Morán comprova uma vez mais a capacidade de transitar entre as mais distintas figuras femininas (fortes ou frágeis, sonhadoras ou pragmáticas) sem mudar a voz, nem transformar radicalmente o corpo. Ela poderia se tornar uma vilã arquetípica nas mãos de atrizes menos calibradas, porém a grande intérprete evita a antipatia do público. Cenas como o contrato assinado com empresários, ou a aparição inesperada do filho em casa comprovam a destreza de Morán com diálogos e olhares. Alonso e Armas também desempenham a contento seus personagens desafiadores, que poderiam se converter num fanático e num psicopata, respectivamente.

A trinca jovem, durante os anos 1970, se revela menos desenvolta, não por problemas de elenco, mas pela insistência da trama em valorizar o triângulo amoroso ao invés das ações terroristas praticadas pelo grupo, ou ainda as divergências ideológicas internas. Talvez a valorização das crises dos ciúmes represente a concessão mais evidente a um cinema comercial, permitindo a identificação do espectador médio com três figuras moralmente contestáveis. No entanto, a predileção pelo romance impede que se discutam práxis revolucionária e antirrevolucionária, estratégias e dissidências. O ritmo de suspense se perde gradativamente, conforme o filme transparece a impressão de que os protagonistas jamais sofrem real perigo de prisão ou morte: os arranjos com a lei ocorrem rapidamente, não há pressão do público, da mídia, nem riscos para a valiosa empresa de Inés. Outras coproduções latinas sobre a ideologia dúbia dos vilões foram mais longe nesse aspecto, a exemplo de O Anjo (2018) e Vermelho Sol (2018), ambos responsáveis por sequências provocadoras a respeito das ferramentas de sustentação de um reacionarismo criminoso no poder. Isenta de julgamentos, da presença povo e dos sobreviventes, a Pátria e Liberdade se torna uma questão de moral e culpa cristã, ao invés de uma discussão mais ampla – em outras palavras, uma investigação mais psicológica dos protagonistas do que sociológica sobre o Chile e a América Latina.

Um dos fatores mais relevantes de Aranha diz respeito ao porte de sua produção. Pode-se falar em algo como um “blockbuster de arte”, com toda a imprecisão possível do termo: Wood conta com inúmeros cenários, dezenas de personagens e figurantes, tratamento de luz, som e montagem impecáveis, reconstituição de época precisa em figurinos e acessórios. Ao invés de encontrar ferramentas metafóricas para aludir à época, ela se materializa de maneira literal, ostensivamente bela. O filme possui recursos para criar qualquer conflito desejado, desde o ato terrorista numa igreja até a perseguição de carro no terço inicial. Não se faz necessária muita criatividade para ilustrar a extrema-direita dos anos 1970, visto que ela pode ser reconstruída enquanto tal. O já citado O Anjo, O Clã (2015) e O Segredo dos Seus Olhos (2009) transmitem impressões semelhantes, apropriando-se de regras do cinema clássico-narrativo para levar ao público amplo temas politicamente contestadores. Que esta abordagem seja considerada incoerente ou estrategicamente inteligente, ela resulta num esforço notável de comunicação ao mesmo tempo com o espectador do cinema independente e aquele do cinema popular, veiculando uma discussão política muito mais complexa do que a histeria dos tempos atuais.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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