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Sinopse

Arca de Noé conta a história de Tom, um guitarrista talentoso e pragmático, e de Vini, um poeta romântico e sonhador. Os dois formam uma dupla carismática e caótica de ratos. Quando o grande dilúvio se aproxima, apenas um macho e uma fêmea de cada espécie são permitidos na Arca de Noé. Tom consegue entrar, mas Vini fica para fora e conta com a ajuda de uma barata engenhosa e a boa sorte do destino para se juntar ao amigo. Com Rodrigo Santoro e Marcelo Adnet.

Crítica

O cinema brasileiro – ou, melhor dizendo, a indústria cinematográfica do Brasil, que vai desde realizadores e produtores até críticos e jornalistas do meio, passando por atores e técnicos profissionais – costuma demonstrar, de tempos em tempos, uma relação um tanto anacrônica (para não dizer bipolar) com a grande referência mundial neste assunto: Hollywood, é claro. O recente caso do drama Ainda Estou Aqui (2024) é um bom exemplo: aplaudido durante sua passagem pelo Festival de Veneza, desde aquele momento começou a gerar uma expectativa de vitória no Oscar, como se apenas esse selo de aprovação pudesse ser levado em conta. A animação Arca de Noé, igualmente um ponto fora da curva no país, apostou todas as suas fichas em se mostrar “como um igual” frente aos concorrentes estrangeiros que dominam esse mercado. Algo a se lamentar, pois se tivesse investido mais do que lhe é original e próprio, qualquer comparação se mostraria irrelevante – e desnecessária.

Para começar, o filme dirigido por Sergio Machado (novato no traço animado, mas conhecido por longas premiados, como Cidade Baixa, 2005, e O Rio de Desejo, 2022) e Alois di Leo (este estreante no formato, mas próximo do gênero, já tendo sido indicado ao Grande Otelo pelo curta Caminho dos Gigantes, 2016, e concorrido no Festival de Cannes com o curta The Boy Who Wanted to be a Lion, 2010) é baseado no livro de poemas infantis A Arca de Noé, de 1975, e que cinco anos depois foi musicado em um álbum e adaptado num especial da Rede Globo. Entre as canções estavam melodias que com o tempo se tornaram clássicas, como “A Casa” e “O Pato”, entre outras. Porém, da mesma forma como os grandes estúdios hollywoodianos tem feito em filmes recentes, como Coringa: Delírio a Dois (2024) ou Wonka (2023) – apenas para citar dois dentre tantos – os produtores de Arca de Noé também demonstram pouca confiança em se assumir como o musical que de fato é. Assim, estes temas que deveria evocar sentimentos nostálgicos (nos pais) e encantar novas gerações (junto aos filhos), passam tão rápido pela trama que nem há tempo para que tais conexões se estabeleçam.

Outro problema que se verifica está na escolha dos protagonistas. Sucessos como as sagas Madagascar ou Meu Malvado Favorito ensinaram que coadjuvantes carismáticos (os Pinguins na primeira, os Minions na segunda) até podem roubar a cena, mas em doses homeopáticas, e não quando assumem por completo do desenrolar dos acontecimentos (veja o fracasso de Os Pinguins de Madagascar, 2014, que arrecadou menos do que qualquer um da trilogia original, ou o que aconteceu com Minions 2, 2022, que precisou recorrer ao personagem Gru para seguir tendo relevância). Por aqui, a aposta recaiu em dois tipos metidos a engraçados, capazes de provocar confusões e doses de fofura com a mesma intensidade, mas talvez um pouco limitados para liderar um enredo dessa magnitude – afinal, está se falando de uma lenda bíblica sobre o fim do mundo e o recomeço de tudo.

Tom e Vini (os nomes não foram escolhidos por acaso) são dois ratinhos cantores que sonham em conquistar multidões com a arte deles, mas tudo o que têm conseguido nos últimos tempos são apresentações de fim de noite em botecos vazios ou mal frequentados. A situação muda quando um deles, o mais xereta, fica sabendo que o velho Moisés, a quem conhecem das redondezas, recebeu uma missão especial: construir uma arca gigante, na qual poderá entrar apenas um casal de cada espécie de animal, pois em pouco tempo um dilúvio interminável cairá nos céus e irá alagar tudo. Ou seja, a única chance de salvação é subir no barco. Mas se podem apenas duplas formadas por um macho e uma fêmea, o que irá acontecer com Tom e Vini? Qual dos dois terá o acesso garantido... e qual será recusado? Há muito o que se poderia discutir a partir disso – inclusive abrindo espaço para questões urgentes e contemporâneas, como pautas identitárias, novas famílias, homossexualidade e mais, mas ninguém aqui parece interessado nesse nível de profundidade – e sem muitos mistérios não só os dois conseguirão entrar, como suas próprias presenças deixarão de ser tão pertinentes: um concurso musical ganha forma, e uma batalha entre valentões e oprimidos irá ditar o andar das coisas.

Se a dupla diminuta tinha tudo para ser o destaque em participações pontuais e envolventes, esse potencial logo se dissipa pela presença constante de ambos. Quem tem melhor sorte é o leão Baruk, mesmo que a inspiração em Odorico Paraguaçu seja por demais forçada – e gratuita, uma vez que não se comunica com o público-alvo da vez. Em um elenco de dubladores gigante – e muitas vezes subaproveitado – quem consegue dizer a que veio é mesmo Lázaro Ramos (leão) e Alice Braga (como a menina Nina, o elo humano com os animais), seja pela experiência que demonstram na função, pela desenvoltura e trabalho criativo que empregam em suas vozes e pelas figuras curiosas que ajudam a criar. Sergio Machado tem um apreço pela atuação e o alcance de cada intérprete (como sua obra em live action comprova) e Alois di Leo é hábil em criar cenários deslumbrantes. Faltou, em Arca de Noé, a liga entre um ponto e outro – ou seja, um roteiro que não apenas desse o espaço que as músicas merecem (sem a vergonha por usá-las como fio condutor dos acontecimentos), como também fosse além de sua origem, oferecendo algo novo e inusitado ao conjunto. Faltou tempero, portanto.

Filme visto durante a 48a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2024

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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