Argentina, 1985
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Santiago Mitre
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Argentina, 1985
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2022
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Argentina / EUA / Reino Unido
Crítica
Leitores
Sinopse
Dois promotores são incumbidos de investigar a ditadura militar mais sangrenta da história argentina. Sem se deixar intimidar pela ainda vigente influência dos militares, eles correm contra o tempo para garantir a justiça.
Crítica
Na atualidade, há ainda quem defenda os crimes cometidos pelas ditaduras militares que tomaram de assalto a América Latina entre os anos 1960 e 1980. Há até quem se eleja às presidências de repúblicas outrora golpeadas por arroubos autoritários de milicos, justamente, depois de homenagear tais criminosos em praça pública. E, embora o cinema não tenha nenhuma obrigação com a História, tampouco podemos dizer que não tenha com ela alguma reponsabilidade. Argentina, 1985 toca no chamado Julgamento das Juntas, primeira vez em que um tribunal civil deliberou sobre os crimes de militares que ocuparam o poder. Em meio ao processo de redemocratização argentina, o promotor Julio Strassera (Ricardo Darín) tem a difícil missão de levar a cabo as centenas de acusações a membros dos altos escalões das Forças Armadas, se tornando assim um homem visado e constantemente ameaçado. No começo da trama, o cineasta Santiago Mitre foca no efeito que a iminência do processo tem na vida íntima/familiar do advogado pressionado por inúmeros agentes da sociedade argentina. Tanto que, ao sair de casa com a esposa e os filhos, prefere a escada ao elevador – talvez se precavendo contra uma possível sabotagem visando sua morte? No entanto, a família não é tratada como ponto fraco, mas situada como fortaleza, pois seus membros demonstram hombridade e coragem para lutar.
Argentina, 1985 tem muitos vieses: as dúvidas de Julio; a necessidade de envergar um sistema acostumado com a lógica da vista grossa; o medo dos atentados aos pleiteantes; os obstáculos para encontrar colegas dispostos ao risco; o diálogo com jovens que formam uma equipe improvável; a fotografia da repressão militar durante o processo; a importância de ouvir as vítimas, etc. São realmente vários assuntos e prismas relevantes aos quais considerar em 140 minutos. Então, pela dificuldade da tarefa de abraçar tudo e evitar a insignificância de algum ponto, devemos atentar à competência do roteiro assinado por Mariano Llinás e Santiago Mitre. Para construir um painel da dificuldade de indiciar militares por crimes cometidos durante a ditadura, o longa-metragem se dispõe a tratar cada um desses temas como pecinhas de um quebra-cabeça que vai aos poucos revelando uma imagem dura. O cineasta bebe na tradição do cinema político disposto a encarar essa sua responsabilidade com a História, não se furtando de assumir um lado e deixando de lado a falácia da isenção. Os promotores são efetivamente encarados como pessoas aguerridas em busca da reparação de uma verdade que teima em ser escondida por homens que continuam detendo o poder de esconder provas, assim como antes esconderam cadáveres e atos hediondos. Há a ideia da nova Argentina contestando a velha nação.
O choque geracional poderia ser mais bem enfatizado. Afinal de contas, fica claro que Julio, interpretado com a excelência de sempre por Ricardo Darín, é uma espécie de intermediário. Sim, pois com sua liderança do processo que ousa convocar a verdade à tona, jovens advogados representam o novo tentando furar a membrana do velho, dos discursos simbolizados pelo reacionarismo militar que coloca a "tradição" acima da humanidade e da lei. No entanto, Santiago Mitre não elege um pilar principal sobre o qual sustentar os demais assuntos, tentando (de modo bem-sucedido) abordar um pouquinho de cada um deles para chegar ao retrato de um momento histórico. Argentina, 1985 mergulha no tribunal, cenário no qual mescla depoimentos encenados e imagens reais de testemunhas a fim de evidenciar a compreensão daquele movimento como exemplar da luta pela dignidade cidadã. E, por falar em pontes, o assistente Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani) também é encarregado de algo dessa natureza, uma vez que a sua juventude idealista em busca de reparação se choca com a própria história familiar mergulhada na retórica militar. Convencer a mãe classe média, descendente de militares e acostumada a uniformes e patentes, é encarado como prova cabal de sucesso frente à opinião pública. Tanto que a cena disso acontecendo marca um forte e fundamental ponto de virada.
Santiago Mitre utiliza habilmente a emoção como aliada para gerar engajamento em Argentina, 1985. Além do diagnóstico dos efeitos pessoais, familiares e coletivos dos inúmeros crimes militares revelados gradativamente, há a representação de depoimentos comoventes. O que mais se destaca nesse sentido é o da mulher que deu à luz vendada com os braços amarrados no banco de trás de um carro a serviço das forças da repressão. Não se trata de uma barganha sensacionalista para desarmar o espectador e leva-lo gratuitamente às lágrimas, pelo contrário. O que está no âmago desse instante-chave é a reiteração das violências do Estado e, quiçá, a emancipação do espectador ainda descrente por meio da catarse. O filme exala essa vontade de justiça e a defende com as ferramentas narrativas próprias ao thriller, deixando um pouco de lado (é verdade) as ambiguidades do sujeito comum convocado a reprisar a luta entre Davi e Golias. Julio é construído por Ricardo Darín como alguém que sente o peso histórico recaindo sobre seus limitados ombros, mas que sempre tem alguém ao redor para levanta-lo. E, felizmente, os coadjuvantes que orbitam em torno do protagonista não o auxiliam para exalta-lo como herói, mas para capacitar a ideia de que a luta é ampla e heterogênea. Como as ditaduras que assolaram a América Latina no período citado são semelhantes, o filme tende a provocar nos brasileiros inveja da Argentina, país que não foge à responsabilidade de olhar criticamente à própria História.
Filme visto no Festival do Rio em outubro de 2022.
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