Crítica
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Crítica
“Eu nunca quis coisas desejáveis: casa, carros, mulheres”. Desde os minutos iniciais, percebemos que Kyle (Liam Hemsworth) não representa o protagonista habitual dos filmes sobre mafiosos. Por não possuir família, romances nem objetivos para o futuro, o roteiro retira do jovem traficante os elementos que tornariam a sua jornada emocionante ou espetacular. Quando foi exibido aos críticos de cinema norte-americanos, Arkansas (2020) foi comparado a Breaking Bad (2008 - 2013), mas diferenças entre os projetos são muito maiores que as semelhanças. Walter White era motivado pela proteção da família, pelo fato de estar doente, pela necessidade de se sentir importante. Havia um senso de justiça, vingança e honra que jamais afeta Kyle, um niilista calado e inteligente. Seu companheiro no crime, Swin (o diretor Clark Duke) tampouco conhece o universo da droga. Eles acatam as ordens recebidas sem contestar, nem sequer conhecerem o rosto do misterioso chefe. O que resta do subgênero do “filme de crime” quando lhe retiram a ação e o espetáculo? Quando somem os planos perigosos, as perseguições, as escapadas de última hora? O resultado é este curioso projeto, que ousa batizar seu primeiro capítulo com o título “O tédio é lindo”.
Duke, diretor estreante em longas-metragens, propõe então uma subversão crítica aos códigos do cinema de gênero. Ele não envereda pelo humor paródico e exagerado, nem mesmo pelo pastiche ultra estetizado de diretores como Quentin Tarantino e Brian De Palma, embora possa haver algumas semelhanças formais. O cineasta opta pelo humor dos silêncios, desconfortos e absurdos. Primeiro, concentra a sua sátira no sul dos Estados Unidos, nos Estados considerados conservadores, agressivos e “caipiras”. Ele cria então os espaços de uma loja de penhores que não penhora produto algum, uma sauna vazia, uma mansão abandonada dentro de um parque florestal, um supermercado convertido em espaço de flerte. Os cenários estão levemente deslocados de suas funções originais, o que favorece a impressão de surrealismo. “Sou guarda florestal”, responde o traficante quando questionado sobre sua profissão. Segundo, a incompetência dos personagens se converte em senso de inadequação, ao invés do humor físico habitual em comédias populares. Kyle e Swin constituem figuras ordinárias, levando seus dias sem desejos específicos. A câmera acompanha a rotina de ambos sem dar a impressão de conduzir a história a um final esperado. O único embate prometido pela montagem paralela (o duelo entre Kyle-Swin e Frog) é frustrado de maneira inteligentíssima.
A montagem e a direção de fotografia de Arkansas são magistrais – não apenas muito bem executadas e refinadas, mas também inovadoras. O editor Patrick J. Don Vito propõe diversos paralelismos inabituais: para além da alternância entre os focos Kyle-Swin e Frog, ele efetua idas e vindas no tempo e, principalmente, apresenta a ação e sua consequência ao mesmo tempo, também em montagem paralela. Ou seja, quando o protagonista se confronta a um adversário, a preparação para o ataque é intercalada com a cena de horas depois, quando já retornou à casa. Isso impede o suspense tradicional (será que Kyle sairá vivo?) para privilegiar uma tensão muito mais interessante (de que maneira Kyle se safou da emboscada?). A montagem substitui o “o quê” pelo “como”: somos constantemente informados sobre o que vai acontecer em seguida, restando descobrir de que maneira conflitos tão improváveis se resolvem. Em paralelo, cada ação é marcada por diversos saltos curtos no tempo, muito eficazes tanto no humor quanto no movimento de colocar o espectador em posição ativa. Um personagem toca a campainha, na cena seguinte ele e o morador da casa já estão se batendo e, mais um corte, um cadáver é visto no chão. Vito substitui o prazer realista do tempo real pelo prazer lúdico da fragmentação do espaço-tempo. Além disso, a divisão em capítulos funciona como união e divisão da trama: as distintas partes produzem um significado especial quando dispostas cronologicamente, porém funcionariam enquanto partes isoladas. O montador encontra uma forma de organização rica em sentidos e estímulos para o espectador.
Já a fotografia de Steven Meizler demonstra outros recursos interessantíssimos. Através de uma série de zooms in e zooms out, reforça a artificialidade das cenas (e portanto, intensifica o humor). Por meio de movimentos panorâmicos e travellings laterais, com a janela da imagem em scope, cria um curioso efeito de circularidade, como se os personagens estivessem presos numa espiral. Ao invés de construir movimentos complexos para as cenas de luta e tiros, reserva os recursos mais simples para a ação enquanto cria coreografias complexas para cenas simples (vide a cena do carro sendo abastecido, com uma câmera girando em 360º). Deste modo, o espectador é levado a imaginar algo importante acontecendo em cenas banais, enquanto observa com apatia os momentos intensos (a cena de tortura). Duke se revela um exímio manipulador das sensações do espectador, propondo efeitos inesperados e perspectivas novas, que jamais deixam a história cair na monotonia ou no lugar-comum. Nenhuma cena corresponde ao que se esperaria dela, tanto em imagem quanto em função narrativa. Além disso, a imagem jamais possui uma textura completamente nítida, como nas filmagens contemporâneas, preferindo certo tom enfumaçado próximo do sonho ou da loucura. Devido ao trabalho de fotografia, Arkansas traz meia dúzia de cenas memoráveis, como a luta na sauna, o enterro de um cadáver e a chegada de Nick (Chandler Duke) à casa.
Na cena final, um efeito sonoro fundamental e muito simples é retirado da cena, provocando perplexidade e surpresa. Pequenos toques como este permitem detectar um jovem diretor de grande potencial, capaz de brincar habilmente com questões de tom, linguagem e recursos cinematográficos. Enquanto os personagens se equilibram em registros diferentes (a comédia refinada de Vince Vaughn se contrastando com o estilo mais sério de Liam Hemsworth, que por sua vez atenua o humor paspalhão de Duke), a narração se desenvolve por meio de uma trajetória inesperada, que se resolve a contento no terço final. É surpreendente que um filme deste porte não tenha participado dos maiores festivais de cinema do mundo. Ele deveria estrear em Tribeca, evento cancelado devido à pandemia de Covid-19, e poderia trilhar um caminho brilhante pelos cinemas internacionais. Ao menos, já está disponível ao público brasileiro. As comédias, e o cinema pop de modo geral, precisam de mais vozes como Duke e Jordan Peele, capazes de confrontar a diversão da violência extremas com um amargo discurso social que lhes serve de base. Enquanto imersão na América Profunda, Arkansas constitui uma divertida fábula sobre os valores da “terra dos corajosos e dos livres” e dos self-made men. Duke consegue articular brilhantemente os mitos do cinema e os mitos da nação.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 9 |
Nayara Reynaud | 6 |
MÉDIA | 7.5 |
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