Crítica
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Sinopse
Paul é um menino que, ao mesmo tempo em que se vê obrigado a mudar de colégio e se afastar do melhor amigo, também precisa lidar com a perda do avô, a única pessoa de toda a sua família que parecia ser capaz de entendê-lo de verdade.
Crítica
Eis que estamos chegando ao fim dos tempos, anuncia o candidato à presidência em uma entrevista na televisão. Poderia ser nas eleições brasileiras de 2022, mas, em Armageddon Time, a cena se passa nos Estados Unidos do início dos anos 1980. É sob esses augúrios preocupantes que o jovem Paul Graff (Banks Repeta, de O Telefone Preto, 2021) dá início a seu processo de abandono da infância, enfrentando pela primeira vez em sua curta vida assuntos que fazem parte de um olhar adulto, como a perda de entes queridos e problemas sociais, como racismo e desigualdade de renda. A família, portanto, está mais uma vez no centro do debate de uma obra assinada por James Gray, cineasta norte-americano que tem reiterado essa preocupação ao longo de uma carreira de mais de três décadas. O diferencial dessa vez, no entanto, é fazer através da perspectiva de uma criança, que se assume como alter ego do diretor, colocando-se em cena de uma maneira simplista, até mesmo infantil. Distante do viés incisivo e reflexivo que por tantas vezes demonstrou em seus filmes anteriores. O que, se por um lado, não deixa de ser uma inovação, certamente também será encarado por tantos outros como um certo tipo de acomodamento e resignação.
Paul faz parte de uma família de judeus emigrantes europeus que, após muito sacrifício, começam a se estabelecer nos Estados Unidos. O garoto vê a si e aos seus como “muito ricos”, mas a realidade não é bem essa. Por mais que possuam casa própria e estejam progredindo, o pai trabalha duro como eletricista, enquanto a mãe se ocupa de atividades como a Associação de Pais e Mestres. O casal, ao menos por ora, só possui condições de manter o primogênito em uma escola particular, e ao caçula é destinado o ensino público. É lá que o garoto fica amigo de Johnny (Jaylin Webb, da nova versão da série Anos Incríveis, 2021-2022), o único menino negro de sua turma e vítima constante de perseguição e preconceito do professor. O instinto natural do protagonista, como se percebe, é de empatia e de se solidarizar com aquele que acaba vítima de uma situação que lhe é imposta, ao mesmo tempo em que, sem saber como reagir contra um modus operandi que parece já consolidado, vai da rebeldia à conformidade com o que termina por vivenciar, escolhendo não os melhores caminhos, mas aqueles que se apresentam como os únicos possíveis.
Ao mesmo tempo em que esse drama colegial vai se desenrolando, atingindo repercussões ora casuais – uma ida à direção – ora mais drásticas – um roubo mal planejado que mostra com efeito às crianças as diferenças em ser branco ou negro em um país marcado pelo segregacionismo, há ainda os problemas comuns a qualquer lar, como falta de dinheiro e doenças. A pessoa mais próxima de Paul é o avô materno, Aaron (Anthony Hopkins, em participação discreta, porém marcante pela delicadeza que imprime em cada interação com o neto, tratando-o não com condescendência, mas como um igual, o que explica dinâmica que se estabelece entre eles). É ele que entende os dilemas e receios do menino, quem consegue ouvi-lo e que, enfim, permite que esse possa se abrir. Através dessas conversas, Gray revela um olhar de mundo em formação, sobre a busca por compreensão a respeito de temas que deveriam ser óbvios, mas que acabam por demais complicados justamente pela interferência adulta. O básico que se distancia por uma simplicidade que não chega a ser alcançada por aqueles que não a aceitam como tal.
Entre a perda eminente do avô e o afastamento precoce do melhor amigo, Paul ainda se vê obrigado a lidar com uma nova dinâmica a partir do momento em que é levado a trocar de escola. A busca por melhores condições de ensino também acarretam a vivência dentro de um círculo elitista e persecutório. Sua realidade atual recrimina o diferente e se afasta da diversidade e do confronto possibilitado pela interação de distintas visões, recaindo apenas em estereótipos rasos e conceitos planos. Tal contexto evita mergulhos profundos e a criatividade que advém pelo contato com o incomum àquilo com o qual se está habituado. Entre pais ocupados com as pressões externas e tutores atentos mais ao nó da gravata do que ao entendimento da lição, eis um jovem forçado a amadurecer antes do tempo, não apenas pelo que perde, mas, também, por tudo que vê sendo posto diante de si como desafio a ser superado e, como consequência, vitórias que devem ser somadas. Não há espaço para caminhos alternativos, um pressuposto que tanto limita quanto abafa sopros contrários ao pré-estabelecido, eliminando surpresas, sejam elas boas ou não.
Anne Hathaway e Jeremy Strong surgem em cena como os pais, e por mais que suas composições sejam acertadas, não é neles que o diretor está interessado. Também por isso, algumas situações soam carentes de um melhor desenvolvimento – como o jantar no qual Paul é visto mais como uma criança mimada e menos como parte de um todo e, portanto, sujeito ao que é estabelecido por aqueles no comando – e esses tropeços, que não inviabilizam o intento do projeto, ao mesmo tempo não são desconsideráveis a ponto de serem ignorados. Assim, James Gray apresenta Armageddon Time como um conto um tanto adocicado a respeito de si mesmo, mais como ele gostaria que tivesse sido, e menos como supostamente teria ocorrido consigo e sua família. É uma memória afetiva e afetuosa, mas por demais particular para levar em conta questões de relevância social e política de modo prático e desenvolvido na medida em que devem ser encarados. Está tudo no seu devido lugar, é certo. Mas de nada adianta um belo quadro se, além dele, resta apenas a lembrança e não a mudança que o conjunto deveria provocar.
Filme visto durante a 46a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
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