Crítica


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Sinopse

Armugan é um homem respeitado na vizinhança. As pessoas ao seu redor acreditam que ele tem um conhecimento misterioso que elas não possuem. Armugan é um finalizador, alguém que auxilia os que não conseguem morrer.

Crítica

Armugan (Íñigo Martínez) e seu fiel ajudante, Anchel (Gonzalo Cunill), moram na cordilheira dos Pirineus, na Espanha, mais precisamente num casebre situado no topo da montanha. Suas companhias são as ovelhas que, ao se agitarem, alertam sobre a chegada de outros humanos àquele lugar bucólico e inóspito. A belíssima fotografia em preto e branco de Daniel Vergara dá um tom de fábula ao que pretende ser uma meditação sobre vida e morte. O primeiro dos homens é portador de uma deficiência nos membros inferiores, condição que dificulta a sua locomoção – especialmente naquele terreno ora íngreme, ora acidentado. O segundo é um grandalhão que carrega o seu mentor para cima e para baixo. A função da dupla é facilitar a passagem das pessoas que estão prestes a morrer. O sujeito que empresta seu nome à produção assinada por Jo Sol é um doulo. Porém, ele não serve aos vizinhos nos momentos de nascimento, mas no polo oposto de suas jornadas. A câmera desliza suavemente pelos cenários naturais capturando gestos simples, como se desejasse garantir que o espectador os compreendesse enquanto indícios do sublime disfarçado de trivialidade. Aliás, em diversos instantes há uma dilatação do tempo para que nenhum elemento nos impeça de contemplar as epifanias.

Armugan pretende enfatizar uma beleza melancólica escondida. Mais até do que isso, o filme tenta evocar segredos do ciclo da vida ao sublinhar a finitude. Nele não há uma história propriamente dita, mas vinhetas que apresentam desafios nem sempre mobilizadores aos personagens. Os diálogos são raríssimos, especialmente na primeira metade da trama, o que tende a tornar a experiência desafiadora aos ávidos por informações. Para se ter uma ideia da dinâmica narrativa, Jo Sol faz uma tomada belíssima da casa em que moram os protagonistas e logo depois se demora no balanço de uma planta ao sabor do vento. Mais adiante, faz um plano longo da rotina lenta dos personagens e segue mostrando a não menos banal existência dos ovinos. O cineasta vai na contramão do cinema hegemônico que acredita ser imprescindível estimular o espectador incessantemente para ele não perder o interesse. Nesse sentido, a produção espanhola selecionada para a 45ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo apresenta um bem-vindo contraponto de serenidade à nossa contemporaneidade de agitação tantas vezes histriônica. Mas, como nem a lentidão e muito menos o alvoroço são necessariamente bons ou ruins – depende de como são utilizados – é preciso dizer que aqui o jogo de cena cansa rapidamente pela ausência de densidade poética/expressiva em seus lindos quadros.

Uma obra-prima como Stalker (1979), do russo Andrei Tarkovsky, fornece tempo para o espectador assimilar o universo riquíssimo que cabe em cada um de seus enquadramentos. O sueco Ingmar Bergman é outro exemplo de criador que muitas vezes preferiu o plano fixo/longo em vez de "picotar" a ação ou mudar repetidamente de perspectiva. Porém, ele igualmente fazia caber um mundo de inquietações nesses recortes "estáticos". Assim, aparentemente pouca coisa estava acontecendo, mas na verdade havia incontáveis nuances e complexidades se entrelaçando e causando movimento. Não basta estender o tempo, desacelerar ou chamar atenção ao imperceptível, entre outras estratégias menos hegemônicas, se houver pouco a ser absorvido. Armugan esgota precocemente o potencial simbólico de suas imagens e, por conseguinte, das indagações filosófico-existencialistas que deveriam decorrer delas. Os dois homens que se complementam, como se fossem metáforas da vida e da morte dialogando em suas impossibilidades, transitam pelos cenários com semblantes angustiados e sem notáveis questões de ordem prática para lidar. Sobram proposições repetitivas dentro dessa tônica indeterminada. Apenas quando a eutanásia é trazida à tona é que existe uma renovação.

Jo Sol cobre as ações com uma fina membrana de mistério, sobretudo as atividades de Armugan no primeiro atendimento que testemunhamos. Uma mulher do vilarejo chama ele e Anchel no meio da noite. O filme se detém mais nas dificuldades logísticas madrugada adentro do que no desenho da insólita reza/vigília posterior. O realizador não mostra os procedimentos do doulo, nem como funciona o auxilio para um moribundo chegar menos desamparado à morte. Depois de uma série de reiterações e cenas mais ou menos parecidas, o realizador introduz o tópico da morte assistida. Uma mãe implora para o doulo abreviar a vida de seu filho pequeno que sofre por conta de uma doença terminal. Armugan se recusa, dizendo que não pode matar ninguém, apenas conduzir os "sentenciados" ao “outro lado”. E isso gera uma revolta em Anchel, homem que acredita no seu dom como algo para trazer alento às pessoas. A única coisa que acontece de positivo nessa discordância é que ela movimenta um enredo que até então parecia esgotando por falta de variações e alternativas. O “chefe” faz um discurso para as cabras, claramente contrário à eutanásia, dizendo que cada instante de vida é um motivo para continuar vivendo. Já seu colega pensa diferente, mas nem isso tira Armugan do marasmo. O cineasta mira no insondável, mas erra a pontaria e fica girando em círculos.

Filme visto online durante a 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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