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Crítica


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Sinopse

Jovem paramédico talentoso, Oleg é casado com Katya, médica plantonista. Ela o ama, mas está farta do rapaz. Oleg passa a receber ordens de um novo chefe, cuja dinâmica de trabalho tende a conturbar mais a vida íntima do casal.

Crítica

O título desse longa russo, Arritmia, pressupõe disfunção. Ela aqui é de natureza dupla e diz respeito às experiências privadas e profissionais de Oleg (Aleksandr Yatsenko). O paramédico testemunha seu casamento ruir aparentemente sem motivo consistente, bem como vê a rotina de trabalho ser alterada por novas diretrizes. Curiosamente, embora sua esposa, Katya (Irina Gorbacheva), seja média, portanto, relativamente corriqueiro eles se encontrarem no hospital, tais universos desritmados convergem apenas ocasionalmente. Aliás, esse é um dos bons predicados do filme de Boris Khlebnikov. A turbulência matrimonial não é vista como responsável por modificar a conduta do protagonista enquanto socorrista – não o vemos, por exemplo, negligenciando pacientes ou tendo alterado seu comportamento nos atendimentos por conta dessa tristeza pré-divórcio. Da mesma forma, os problemas oriundos das mudanças de paradigmas no sistema de saúde pouco interferem nas negociações domésticas suspensas entre as ponderações e as rupturas definitivas.

Há uma evidente busca por sobriedade em Arritmia. Às vezes esse é o maior trunfo da narrativa pouco afeita a rompantes emocionais, mas noutras ameaça instaurar uma pasmaceira. A estrutura do roteiro estabelece disparidade entre os instantes de conversa, encarregados de deflagrar problemas, e os interlúdios, exatamente as execuções das tarefas médicas. Deliberadamente, o realizador não se foca no que leva Katya a pensar numa separação, permanecendo basicamente colado na experiência de Oleg. Apenas numa das sequências iniciais, justamente aquela em que o homem deixa à mostra sua inclinação pelos excessos (sobretudo quanto a bebidas alcoólicas), a esposa tem seu olhar privilegiado. Somos ali levados a compreender o desgosto diante da atitude ensimesmada e alheia do paramédico à mesa durante uma calorosa comemoração de aniversário. Porém, curiosamente, esse atributo de personalidade não é retomado à frente. Assim sendo, os motivos são sugeridos somente nesse momento repleto de sutilezas, do qual decorre todo o processo de divergência entre os casados.

Nem sempre fica claro o aspecto principal de Arritmia. Em várias passagens, a denúncia da precariedade do sistema de saúde russo ameaça tomar de assalto o protagonismo, eclipsando a turbulência matrimonial de Oleg e Katya. Confrontado pelas ordens que estabelecem um ritmo praticamente mecânico ao atendimento, o homem não demonstra estar aberto às novidades, principalmente porque sua abordagem no trato com os pacientes é bem humanista. Isso o coloca em rota de colisão com o novo chefe, o burocrata pouco aberto a diálogos, pois de conduta absolutamente condicionada pelas métricas impostas como normas. Entretanto, a rara disposição de Boris Khlebnikov por chocar os universos à beira de um colapso causa uma fragmentação nem sempre produtiva. Ele trata anseios profissionais e pessoais de modo compartimentado, sendo bem-sucedido no que diz respeito à fuga aos possíveis lugares-comuns, mas ao preço de criar a barreira quase artificial entre tais realidades operando em inerente simetria. O filme apresenta, mas pouco investiga.

Arritmia tem duas ótimas interpretações, as de Aleksandr Yatsenko e Irina Gorbacheva. Ele cria um personagem obstinado, perdido entre a execução das tarefas e a urgência de compreender como seguirá a vida dentro de uma nova configuração afetiva. Ela, ainda que restrita à meia dúzia de expressões contrariadas, consegue magnetizar nossa atenção aos não ditos, àquilo que o longa propositalmente não vai destrinchar, mas que certamente está na base dos descontentamentos avolumados com o tempo. O maior mérito dessa produção é escapar às convenções, nem que para isso seja preciso hipotecar um pouco da emotividade, assim resultando em algo despojado de ambições profundas. No fim das contas, se trata de um enredo sobre alguém tentando se reequilibrar ao ser duplamente desestabilizado. Motivações a afins acabam sendo preteridas em função do testemunho das ações. O tempo opera de maneiras contrárias a Oleg. Como socorrista, o entende inimigo. Já enquanto marido, o abraça como aliado, pois deixa rancores, resoluções e senões decantarem.

Filme visto online no 1º Festival de Cinema Russo, em dezembro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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